Temas em discussão

Vã esperança

29 jun 2015

O Globo

Limites ao uso da máquina estão na legislação, o campo apropriado para combater essa prática

Aaprovação, na Câmara, de um dispositivo que estende aos aposentados os reajustes do salário mínimo — mais uma insanidade da atual legislatura — foi recebida pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com irritação e um comentário: “Tudo tem limite.” À luz da estonteante pauta que o deputado impôs ao plenário praticamente desde a sua posse, boa parte dela contemplando uma destrambelhada reforma política, seria o caso de complementar a frase: “Tudo tem limite quando sai do controle da Mesa Diretora”.

Não há outra interpretação possível para a maratona de votações, tocadas de afogadilho, que consagrou uma colcha de retalhos, uma reforma Frankenstein gerada ao sabor de interesses negociados no balcão do toma lá dá cá próprio da baixa política. Nesse pouco apreço ao que de fato importa politicamente para o país, a reforma de Cunha acaba, por exemplo, com a reeleição, um grave equívoco.

O fim da reeleição tem um mantra: a ideia de que a recondução no Executivo por mais um mandato seria responsável pelo uso da máquina pública, e seus recursos, com fins eleitorais. Mera redução de uma questão — a falta de ética de quem ocupa cargos públicos — que extrapola essa visão. Primeiro, porque, uma vez constitucionalmente proibido o chefe do Executivo de ir às urnas para se manter no cargo, nada garante que ele não movimente órgãos e recursos oficiais em favor de um correligionário de seu interesse. Nesse caso, a máquina continuará beneficiando algum candidato da escolha do partido da situação.

A tradição patrimonialista e clientelista da política brasileira mostra que tais recursos existem com ou sem reeleição. O mantra, portanto, é um argumento sem substância. Limites a essa prática estão contemplados na legislação eleitoral, o campo apropriado para combatêlos. Para completar o equívoco, essa rodada inicial de votações da reforma de Cunha também aumentou de quatro para cinco anos o mandato de prefeitos, governadores e presidente. Com isso, desfez um acerto: desde que foi aprovada, no primeiro governo de Fernando Henrique, a reeleição revelou-se positiva.

De fato, quatro anos de mandato, com uma recondução possível, é um sistema sensato: permite manter no cargo o governante com bom desempenho, e dele alijar, por via eleitoral, aquele de má performance político-administrativa. Funciona tradicionalmente assim nos Estados Unidos, por exemplo, e tem se revelado eficiente no Brasil. Já o período de cinco anos é muito longo para um governo desastroso.

O fim da reeleição foi aprovado por esmagadora votação, razão para dar a decisão praticamente como favas contadas. Mas, de qualquer forma, o que for votado na Câmara ainda precisa passar por um segundo turno e por idêntico ritual no Senado, o que abre uma possibilidade de o Congresso rever esses e outros absurdos, mesmo contra a vontade do presidente da Câmara. Afinal, tudo tem limite.

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Uso da máquina

29 jun 2015

João Batista Damasceno é cientista político e juiz

A democracia e a República pressupõem a alternância no poder e o limite temporal da representação

Areforma política em curso no Congresso é tudo, menos a reforma institucional desejada pela sociedade, que não a debateu ou foi consultada. É um arranjo de interesses transitórios, onde a crença na República e na democracia foi substituída pelo casuísmo que desrespeita a pluralidade. A incivilidade atropela o regimento e a racionalidade que ajuda a construir instituições permanentes. Reformas casuísticas não sobrevivem, pois ficam sujeitas ao movimento pendular da política e aos retrocessos com o retorno dos prejudicados.

De tudo já se tentou, transitoriamente, em matéria de política no Brasil desde a primeira eleição, em 1821, para representantes às Cortes portuguesas. O oportunismo da reforma de 1841 provocou as Revoltas Liberais de 1842. A coincidência de mandatos foi tentada em 1982, com a prorrogação dos mandatos dos prefeitos eleitos em 1976.

A República instituiu a eleição de presidente e governador e, visando à alternância no poder, proibiu a reeleição. A proibição, para cargos executivos, pode restringir o uso da máquina política, ainda que não seja a solução para os problemas da democracia. Foi o presidente FHC, num golpe institucional, em momento transitório de alta popularidade e venalidade de parcela do Congresso, quem instituiu a reeleição para chefes de Executivo. Dois deputados grampeados falaram da venda dos seus votos e renunciaram para não serem cassados.

Golpes se fazem com armas, com suborno, mas também com o clamor popular transitório. Este último modelo é o bonapartista, alusão ao golpe do sobrinho de Napoleão, em 1851, que inspirou a frase de que a História só se repete como farsa. A reeleição para cargos do Executivo é estranha à República brasileira e sua prática demonstrou que acentua os vícios no processo eleitoral, promove a desorganização administrativa e propicia confusão entre o interesse público e o do governante.

Os problemas da democracia brasileira vão além do processo eleitoral. Tampouco as fraudes são os únicos meios de viciamento da representação. Nem mesmo a criação da Justiça Eleitoral, concebida como instância racional para solução de conflitos, sem interferência política, se mostrou plenamente satisfatória. Até a escolha dos juízes eleitorais, por vezes, não escapa a uma análise de quem busca falsidades em declarações no seio das próprias Cortes eleitorais.

A reeleição de presidente, governadores e prefeitos e a indeterminação do número de mandatos legislativos têm possibilitado toda sorte de uso da máquina pública. A democracia e a República pressupõem a alternância no poder e a temporalidade da representação. Mesmo no Judiciário, é hora de se pensar em tempo máximo de permanência nos tribunais. Mas a PEC da Bengala, outro casuísmo, possibilitou a permanência de juízes até os 75 anos.