Uma lei sob constante ameaça dos políticos
06/06/2015
Isabella Souto
Alessandra Mello
André Shalders
 
Iniciativa de uma campanha popular, a Ficha Limpa completa cinco anos enfrentando projetos para abrandar a inelegibilidade
 
Resultado de uma grande mobilização popular, a Lei da Ficha Limpa completou na última quinta-feira cinco anos de promulgação. Foi cerca de 1,3 milhão de assinaturas coletadas em todo o Brasil em apoio ao projeto que tornou mais rigorosos os critérios para permitir que um candidato tome posse. Desde a sua criação, a Ficha Limpa sofre sucessivas tentativas de abrandamento e foi alvo de manobras para não ser aplicada. Cinco anos depois, tramitam na Câmara, em regime de prioridade, pelo menos duas propostas cujo objetivo é “melar” a aplicação da lei, facilitando a vida de políticos que tenham sofrido condenações judiciais.
 
Um dos projetos é de autoria do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) e foi desarquivado no começo do ano. O objetivo da proposta, que aguarda a escolha de um relator na Comissão de Constituição e Justiça, é deixar claro que políticos condenados por improbidade administrativa só se tornarão inelegíveis caso sejam condenados também por enriquecimento ilícito e lesão ao patrimônio público. Na justificativa do projeto, Marquezelli diz que a proposta segue o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral sobre o tema, “de modo a garantir a segurança jurídica e a evitar decisões judiciais conflitantes”. Não são raros os casos de prefeitos e governadores que acabam condenados por improbidade administrativa sem que tenham enriquecido de forma ilícita. É o que ocorre, por exemplo, com quem descumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal.
 
O outro projeto, que tramita junto do primeiro, foi apresentado pelo deputado Arthur Oliveira Maia (SD-BA) e pelo ex-deputado Sandro Mabel (PMDB). O objetivo é permitir que o candidato desconte do prazo de inelegibilidade, elevado pela lei da Ficha Limpa para oito anos, o tempo que decorrer entre a condenação por um colegiado e o trânsito em julgado. Na prática, a proposta ataca um dos pontos mais importantes da Ficha Limpa, já que antes da lei o prazo de inelegibilidade era de apenas três anos. A regra valeria tanto para processos criminais, quanto para aqueles de improbidade administrativa. De acordo com Maia, a “rapidez” com que tramitou a Lei da Ficha Limpa impediu que fossem vistos alguns “defeitos graves” do projeto.
 
Um exemplo citado na justificativa do projeto de Maia e Mabel é um indivíduo que tenha sido condenado a 30 anos de prisão. Contada a perda dos direitos políticos depois do cumprimento da pena, ele estaria impossibilitado de concorrer a cargos públicos eletivos por 40 anos ou mais, o que poderia ser equivalente à cassação de seus direitos políticos e uma punição “excessiva”. Dessa forma, avaliam que a regra é um “desestímulo ao uso dos meios recursais próprios em verdadeira negativa de acesso ao Judiciário”. Se aprovado na CCJ, o texto segue direto para o plenário. A proposta ainda precisará passar pelo Senado.
 
Membro do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e um dos principais articuladores para a aprovação da lei, o juiz Márlon Reis rebateu com veemência os argumentos dos autores das propostas e já avisou: se o texto for aprovado, o grupo vai agir judicialmente para tentar impedir a alteração na Lei da Ficha Limpa. De acordo com o magistrado, o impedimento ao réu de se candidatar nas eleições se deve à suspensão dos direitos políticos, e não por inelegibilidade. “Juridicamente, são coisas diferentes”, argumentou.
 
Marlon Reis lembrou ainda que “a Lei das Inelegibilidades já previa a perda do direito de disputar cargos eletivos depois do cumprimento da sentença, só que o prazo era de três anos”. E completou: “O que fizemos foi apenas aumentar para oito anos. Do jeito que estão querendo, a lei vai ficar mais leve do que era antes”, disse o juiz, que atua no Maranhão. Sobre o “desestímulo ao recurso”, o magistrado foi enfático: “Essa alegação é baseada na má-fé, em candidatos que fazem a sua defesa apenas com interesse eleitoral”.
 
Ataques 
A aprovação da lei ocorreu depois de dois anos de campanha, conduzida por diversas entidades, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, antes de o projeto de iniciativa popular virar lei. Desde que foi promulgada, a Lei da Ficha Limpa já foi contestada diversas vezes na Justiça e no Legislativo. A primeira contenda foi enfrentada já um mês depois da promulgação, em agosto de 2010, quando o primeiro candidato acabou barrado pela Ficha Limpa. Em fevereiro de 2012, o Supremo decidiu que ela valeria para as eleições municipais daquele ano. No ano seguinte, em 2013, a Ficha Limpa sofreu mais uma tentativa de alteração. Projeto de lei apresentado por um grupo de deputados tentou retirar da norma a possibilidade de os prefeitos serem considerados inelegíveis por causa da rejeição de seus balanços pelos tribunais de contas estaduais, órgãos auxiliares do Poder Legislativo. Pela proposta, somente seria penalizado quem tivesse tido as contas rejeitadas pela Câmara de Vereadores. Uma mobilização popular, no entanto, barrou a tentativa.

 

 
 
“Do jeito que estão querendo, a lei vai ficar mais leve do que era antes”
 
(Marlon Reis, juiz e membro do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral)
 
Para saber mais - Cassação de mandato
Sancionada em 4 de junho de 2010 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei da Ficha Limpa endureceu os critérios para aqueles que desejam se candidatar a cargos públicos. Ficaram inelegíveis, por exemplo, os que renunciaram para a cassação; os que foram condenados por crime de improbidade administrativa, entre outros. Ao todo, a Ficha Limpa criou 30 novas hipóteses nas quais os candidatos ficam impedidos de tomar posse. A lei também ampliou o tempo de inelegibilidade — antes, um cidadão ficava inelegível por três anos depois de cumprir pena. No entanto, desde que entrou em vigor, a lei foi alvo de várias contestações judiciais. No Congresso, parlamentares apresentaram algumas propostas tendentes a abrandar a norma. Há propostas de parlamentares para tornar inelegíveis os servidores públicos que tenham sido demitidos “a bem do serviço público”.