O poder vai para o centro do país. E a notícia, também

30 jun 2015

RENATA MARIZ

O entusiasmo com a cobertura da inauguração da nova capital do país mobilizava a equipe de 15 pessoas do GLOBO que havia chegado quatro dias antes do ato da fundação de Brasília, em 21 de abril de 1960. O Brasil se preparava para a mudança do centro do poder para o centro geográfico do país. E, com ele, seguia a notícia. Todo o país acompanhava a inauguração da nova capital, que, na avaliação de alguns, não passava de um capricho do presidente Juscelino Kubitschek. Brasília despertava amor e ódio, sobretudo no Rio, que perdia o status de capital federal.

ARQUIVOEmoção registrada. O primeiro candango de Brasília, José Costa, atira-se aos pés de JK e beija o chão da capital

“Estamos aqui numa redação improvisada, em que todos trabalham 20 horas por dia. Todos comandam, todos obedecem, e há somente uma ideia: O GLOBO”, dizia o texto de Herbert Moses, diretor- tesoureiro do jornal, transmitido da recéminstalada sucursal de Brasília.

No dia 17, um domingo, a sucursal foi instalada na Rua da Igrejinha, na Superquadra 107, parte Sul da cidade. O núcleo pioneiro, chefiado por Mauro Salles e Fernando Pimentel, com Rubens Santos de assistente, incluía 6 repórteres e redatores, além de auxiliares. As reportagens mostravam o ritmo alucinado dos últimos preparativos para a inauguração de Brasília.

A mais de 1.000 km da sede do jornal, no Rio, a rotina na sucursal de Brasília ficava cada vez mais acelerada. As linhas telefônicas ainda estavam sendo instaladas, conforme noticiara o jornal. Operários trabalhavam 24 horas para garantir hospedagens, ainda que improvisadas, aos que chegavam para a inauguração. O transporte era precário, mas os repórteres percorriam um raio de 20km várias vezes por dia em busca de novidades. E não eram poucas.

Contavam as reportagens que toneladas de alimentos chegavam a Brasília para evitar o vexame de se passar fome durante os festejos da inauguração. Uma nota falava do espanto de jornalistas ao serem acordados, às 4h da madrugada, por operários: “Viemos colocar os tacos do assoalho”. Deputados, senadores e caminhões de mudança não paravam de chegar. As vias estavam “entupidas de carros”. O título do dia anterior à fundação, “Brasília: um pandemônio às vésperas de tornar-se capital”, traduzia o clima da cidade.

Fazer com que todas as notícias chegassem a tempo de serem publicadas no vespertino, à época, era outro desafio. Nem sempre o teletipo, espécie de máquina de escrever que transmitia dados por meio de uma fita mecanicamente perfurada, funcionava. Recorria-se ao telefone. As correspondências seguiam por São Paulo para chegar ao Rio. Quando informada que o noticiário havia chegado a tempo, a sucursal em Brasília exultava, contou Herbert Moses, em texto publicado na edição do jornal de 22 de abril de 1960.

Severino Bezerra da Silva, que foi motorista do jornal por 33 anos, lembra as dificuldades:

— Eu chegava no aeroporto com os rolos de filme (fotográfico) debaixo do braço e procurava alguém confiável, uma freira, um padre ou o comandante da companhia aérea para pedir que levassem o material até o Rio. Lá, alguém da redação buscava a encomenda.

O pernambucano de 79 anos, hoje taxista em Brasília, chegou em 1959 para trabalhar nas obras da cidade. Ele coleciona histórias sobre a rotina do GLOBO no início da capital. Ri ao contar que, certa vez, o Rural Willys da Ford que dirigia apagou no meio do trajeto para o aeroporto com os três irmãos Marinho a bordo. Eles desceram do carro para empurrar, conta:

— Imagine só, Roberto, Rogério e Ricardo empurrando o carro. Rapidinho pegou, acho que foi uma barbeiragem minha que fez afogar. Mas o dr. Roberto era muito humilde, nem parecia que era o chefão.

As movimentações no Rio, prestes a se tornar a 22ª unidade da Federação, também eram acompanhadas de perto pelo jornal. Além da iminente posse do embaixador José de Sette Câmara como governador provisório do Estado da Guanabara, havia a preocupação com a assistência que a União poderia deixar de prestar ao Rio, a ex-capital.

A mudança da capital do Brasil abria novas oportunidades para o comércio, que colocava anúncios, em meio às matérias, do tipo: “Brasília… Para você que vai transferido… Solucione o problema das malas comprando na fábrica A Mala Paulista”. Havia propaganda de outros serviços, como consultas com um tal Dr. Muniz para “fraqueza sexual”, venda de “gado leiteiro” ou as maravilhas do “primeiro leite em pó fabricado no Brasil”.

Do cenário de “pó vermelho impiedoso e avassalante”, na descrição que uma das reportagens fez de Brasília, surgiram fotos memoráveis, como a de JK discursando para uma multidão durante a inauguração da cidade. O GLOBO retratou ainda histórias mais prosaicas, como a do deputado Abel Rafael Pinto, obrigado a alugar um ônibus para levar os 13 filhos e a mulher até Brasília. Um casal de Cachoeira do Sul (RS) levou oito meses numa carroça para chegar à nova capital a tempo da inauguração. Operários saíram de Barreiras (BA) com uma onça preta para entregá-la ao zoológico brasiliense. E os deputados Osíris Pontes e Lino Braun puxaram revólveres para resolver problemas com o transporte dos seus móveis para a nova sede do poder.

Para acompanhar as informações ligadas ao governo federal, foi lançada, na edição vespertina de 18 de abril de 1960, a seção O GLOBO no Planalto, em substituição à coluna O GLOBO no Catete. Começava a cobertura do poder na nova capital federal.

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Um planeta chamado Brasília

RICARDO NOBLAT

Brasília é mais para ser admirada do que para ser vivida. Foi uma cidade feita para o automóvel ou para um eficiente sistema de transporte coletivo. Como o sistema ainda não existe...

Brasília tem 55 anos. Moro lá há 33 anos. Mesmo assim, quando me vejo na Esplanada dos Ministérios com o prédio do Congresso ao fundo, ou na Praça dos Três Poderes entre a sede do Supremo Tribunal Federal, os fundos do prédio do Congresso e o Palácio do Planalto, costumo lembrar o que disse o russo Yuri Gagarin ao visitar a cidade um ano depois da sua inauguração em abril de 1960:

— Tenho a impressão de que estou desembarcando num planeta diferente, não na Terra.

Sim, porque Brasília, entre outras particularidades, é uma das raras cidades do mundo que tem ano, mês, dia e hora de nascimento. As cidades nascem espontaneamente. Brasília saiu da prancheta para a realidade do planalto deserto central do país. Ao fazê-lo, capturou a imaginação do planeta muito antes de ser reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade.

O célebre escritor francês André Malraux saudou Brasília como “a capital da esperança”. Darcy Ribeiro preferiu apontála como a utopia que se realizou. Para o bem ou para o mal, Brasília é até hoje o mais ousado experimento urbanístico jamais realizado. Ou você a ama ou a detesta. Não há meio-termo. A monumentalidade de Brasília primeiro atrai, depois espanta e por fim esmaga.

O céu de Brasília foi chamado de “o mar de Brasília” pelo urbanista Lúcio Costa, o idealizador da cidade. O arquiteto Oscar Niemeyer concebeu os poderosos enfeites — a catedral com seus anjos gigantescos, vitrais azuis e acústica quase perfeita, o Palácio da Alvorada de colunas graciosas que se tornaram uma marca de Brasília, o Teatro Nacional, o Museu Nacional, e o quê mais?

Essa é a Brasília do cartãopostal. Há outra, porém. A Brasília que, pelo plano original, deveria abrigar no ano 2000 cerca de 500 mil pessoas e que, no ano passado, abrigava quase três milhões. É a quarta cidade mais populosa do país. Entre as capitais brasileiras, é a que possui a maior desigualdade de renda. E é também a que detém um dos maiores índices de criminalidade.

Brasília é mais para ser admirada do que para ser vivida. Foi uma cidade feita para o automóvel ou para um eficiente sistema de transporte coletivo. Como o sistema ainda não existe... Os grandes espaços, impossíveis de serem ocupados desde o tombamento da cidade, separam as pessoas. Prédios e monumentos foram construídos desconhecendo a escala humana.

Por naturais, as demais cidades se reinventam todo o tempo. Brasília foi inventada uma só vez.