Nova lei humaniza política migratória e reduz burocracia

Valor econômico, v. 16, n. 3757, 16/05/2015. Brasil, p. A3

Daniel Rittner

O governo dá largada, nesta semana, à maior reforma de suas leis sobre migração e tratamento aos estrangeiros desde o fim da ditadura militar. Um texto costurado pela Secretaria Nacional de Justiça será apresentado na quinta-feira pelo senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) como substitutivo a um projeto que tramita no Congresso Nacional há dois anos.

A legislação atual, em vigência desde 1980, tem como foco a segurança nacional e cede lugar a um marco jurídico que coloca os direitos dos imigrantes no centro das atenções. Na prática, o novo texto busca acabar com o cipoal de decretos e portarias que foram editados nos últimos 35 anos para suavizar o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815), além de colocar ponto final em uma série de descumprimentos de acordos internacionais assinados pelo país.

O leque de possibilidades para a concessão de vistos será ampliado. A intenção é remover entraves burocráticos a investidores, mão de obra especializada, pesquisadores acadêmicos e estudantes que façam trabalhos durante seus períodos de férias.

Um exemplo de como o Brasil fere regras acordadas está no memorando de entendimentos com a Alemanha para o programa estudantil de férias-trabalho. O convênio permite atividade remunerada a jovens que queiram complementar financeiramente sua estadia no país. A Alemanha cumpre rigorosamente. No Brasil, a emissão do visto demora cerca de seis meses, em média.

Também ficam mais abertas as portas para a acolhida de cidadãos provenientes de países em situação de "grave ou iminente" instabilidade institucional, calamidades de grandes proporções ou graves violações de direitos humanos, que garantem acesso ao visto temporário. Com isso, o Brasil marca uma importante diferença de tratamento aos imigrantes na comparação com países da Europa, que se veem pressionados a apertar o controle de suas fronteiras.

O visto temporário passa a abranger 11 situações diferentes e a duração máxima de estadia não ficará mais engessada no texto da lei - os prazos serão definidos por regulamento, mas evita-se uma série de procedimentos embaraçosos e burocráticos. Por exemplo: a nova legislação abre espaço para que, em vez de gastar tempo e dinheiro com trâmites administrativos para a renovação periódica de seus vistos, pesquisadores estrangeiros com a intenção de fazer um curso de longa duração no Brasil ou mão de obra importada para um projeto de longa maturação possam ter uma autorização em conformidade com o tempo real de permanência no país.

Com enfoque no tratamento humanitário, há novas disposições para a concessão de asilo e para a extradição. Veda-se a hipótese de asilo a quem tenha cometido crimes de genocídio, de guerra ou contra a humanidade.

A modernização da política migratória ocorre em um momento de inflexão no país. Depois da leva de imigrantes que chegaram em território brasileiro, até meados do século passado, o número de estrangeiros e naturalizados foi caindo gradualmente até 2000. No Censo de 2010, porém, esse contingente voltou a subir: eram 510 mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 18% a mais do que na contagem anterior da população. A expectativa, com o fluxo mais recente de haitianos e bolivianos, é que esse número já tenha crescido.

"Os desafios de uma política migratória com diretrizes claras e humanistas voltaram de forma mais intensa", diz o senador Ricardo Ferraço, relator do projeto no Senado, lembrando que o Brasil tem atraído um fluxo maior de migrantes não só da vizinhança, mas da África e da Ásia. "Buscamos agora dar um enfoque ao migrante, não mais ao estrangeiro."

O projeto de lei original foi apresentado pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), mas sofreu mudanças, que foram coordenadas por Ferraço com o secretário nacional de Justiça, Beto Vasconcelos, ex-chefe de gabinete da presidente Dilma Rousseff. O texto foi discutido com a Casa Civil, Polícia Federal, Itamaraty e Ministério do Trabalho. Sua versão final deverá ser apresentada na quinta-feira, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, que tem poder de votar o relatório em caráter terminativo - sem a necessidade de passar pelo plenário.

Como já tem aval do governo, a ideia é que o texto possa prosseguir para a Câmara dos Deputados, em uma tramitação ágil e sem ficar anos dentro da gaveta.

"O que estamos fazendo é a revisão de um dos últimos filhos normativos da ditadura militar", diz Vasconcelos. Na avaliação do secretário, a costura em torno do projeto é um exemplo de construção suprapartidária. Ele também destaca o processo de consultas à sociedade civil, que culminou com a realização de uma conferência nacional sobre migrações e refúgio em 2014, cujos resultados foram considerados no novo texto. "O estatuto em vigência é uma lei fechada, burocrática e impeditiva. A nossa proposta é de uma lei transparente, aberta e resguardadora de direitos e garantias."

Como exemplo concreto de uma reminiscência da ditadura, Vasconcelos cita um artigo da legislação em vigor que dá ao Ministério da Justiça poder de até mesmo impedir a realização de "exibições artísticas ou folclóricas" por estrangeiros, caso seja "conveniente aos interesses nacionais".

Muitos aspectos da nova política de migração precisam, depois de aprovada a lei, ser regulamentados - é o caso da duração dos vistos. O próprio texto da nova legislação está aberto a aperfeiçoamentos durante o trâmite legislativo, afirma o secretário. Para ele, o importante é que ela "tira o subjetivismo e impõe a objetividade" no tratamento aos imigrantes. "Toda imigração regular vai se tornar mais ágil e menos burocratizada."

O texto acordado com Ferraço traz ainda uma seção destinada especificamente aos direitos dos brasileiros com residência no exterior. Há uma novidade. O emigrante que decida retornar ao país poderá trazer seus bens, novos ou usados, sem tarifas de importação e taxas aduaneiras, conforme regulamentação da Receita Federal.

Ao contrário de pleitos de segmentos da sociedade, que queriam a criação de uma Autoridade Nacional Migratória, a Polícia Federal continuará com suas funções atuais. Também não se garante direito a voto do imigrante, o que exigiria emenda constitucional.

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Brasil e EUA tentam fechar acordo de facilitação de entrada

Valor econômico, v. 16, n. 3757, 16/05/2015. Brasil, p. A3

Daniel Rittner

Autoridades brasileiras e americanas têm interesse em incluir, na visita que a presidente Dilma Rousseff fará aos Estados Unidos em junho, um compromisso em torno da adesão do Brasil ao Global Entry. Esse programa permite a entrada de turistas frequentes - principalmente empresários e altos executivos - em território americano sem passar por longas e demoradas filas de imigração, mediante cadastro prévio.

Por outro lado, avanços na dispensa de vistos estão praticamente descartados, o que mantém distante a perspectiva de viajar para os Estados Unidos sem buscar um carimbo nos consulados americanos antes do embarque. Exigências feitas pelo Homeland Security, o departamento que cuida de assuntos migratórios, são consideradas inaceitáveis pela diplomacia brasileira.

Um ponto, em particular, gera forte incômodo: a obrigatoriedade de um convênio, entre os dois países, por meio do qual a Casa Branca pode ter acesso a informações sobre brasileiros que sejam alvos de processos judiciais - mesmo sem condenação - ou suspeitos de terrorismo. Para garantir a isenção de vistos, desde 2014, o Chile teve que aceitar esse tipo de requerimento. "É um modelo de acordo particularmente intrusivo", comenta um alto funcionário do governo, que levanta dúvidas sobre a constitucionalidade de abrir informações de natureza privada para outros países.

Por isso, houve certo mal-estar, que não será dito publicamente, com declarações da embaixadora dos Estados Unidos em Brasília, Liliana Ayalde, de que a eliminação de vistos só dependeria do Brasil. Washington quer ter acesso a dados não só de cidadãos brasileiros com passagem pela polícia, ou que já foram condenados judicialmente, mas também de quem apenas é investigado por algum motivo. Além disso, não há sequer tipificação de terrorismo nas leis brasileiras, o que inviabiliza qualquer tipo de compartilhamento de informações concretas sobre o assunto.

Quanto ao Global Entry, um acordo estava perto de ser selado para a visita de Dilma à Casa Branca, em 2013. A viagem foi cancelada, em meio ao escândalo da espionagem eletrônica denunciada pelo ex-agente Edward Snowden, e houve congelamento das negociações. As conversas foram retomadas discretamente, no ano passado, com uma novidade que ajuda na adesão brasileira: não há mais exigência de reciprocidade, como antes, algo bem visto pela Polícia Federal, que não tem um programa semelhante para a entrada de estrangeiros no país.

No início, falava-se na entrada de até 5 mil viajantes frequentes em um projeto-piloto do Global Entry com o Brasil. Depois, esse universo foi reduzido para cerca de 1,5 mil brasileiros. Agora, o Homeland Security teria aberto mão das cotas e o número está em aberto. Para permitir um acordo a tempo da visita de Dilma, daqui a aproximadamente 40 dias, os negociadores veem a necessidade de mais algumas reuniões, que ainda não foram marcadas. Sem uma aceleração das discussões, o mais provável é apenas uma declaração de Dilma e do presidente Barack Obama de que os dois países se comprometem a alcançar um acordo "proximamente", sem data definida de implementação.

O programa não tem relação com a necessidade de vistos. Requer uma inscrição, no valor de US$ 100, e entrevista em um consulado americano. Quem é aprovado obtém o benefício por cinco anos, mas continua precisando de visto, caso não haja acordo de dispensa entre os países. A vantagem é a rapidez nos procedimentos de entrada e saída. Em vez de esperar um agente de imigração e explicar os motivos de cada visita, os participantes podem "driblar" as filas e submeter seus passaportes à leitura eletrônica em quiosques instalados em 42 aeroportos.

A experiência demonstra que o tempo médio de liberação diminui para menos de um minuto. Os terminais que mais recebem voos do Brasil, como Miami e Nova York, estão incluídos na lista. Ao todo, estão inscritos no Global Entry 1,8 milhão de viajantes frequentes aos Estados Unidos, de países como Alemanha, Coreia do Sul e México. Por agilizar os trâmites, a adesão brasileira é fortemente apoiada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Amcham.