Contra prisões abarrotadas

6 jun 2015

CHICO OTAVIO

Para reduzir população carcerária, Defensoria do Rio pede a juízes liberação de usuários de drogas

Na contramão da corrente que prega o endurecimento das leis, instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e as Defensorias Públicas estão lançando uma série de ofensivas para esvaziar as cadeias do país. A iniciativa mais controversa foi tomada no Rio: a Defensoria Pública do estado, responsável pela defesa de 80% dos réus em ações penais, passou a orientar os 762 defensores em exercício a pedir automaticamente a inconstitucionalidade de toda prisão de usuários de drogas no estado. Sem esperar pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que apreciará o assunto, o órgão tenta revogar na prática a criminalização do consumo, por entender que é questão de foro íntimo do usuário — a prisão, no caso, seria invasão de privacidade.

Ao mesmo tempo, o CNJ corre o país para consolidar o projeto “Audiência de Custódia”, que obriga as autoridades a levar o acusado à presença do juiz até 24 horas após sua prisão. O Conselho sustenta que há casos em que a prisão é desnecessária, embora sejam frequentes as situações em que um acusado pobre demora meses preso antes de ser levado à presença de um juiz. No Maranhão, um mutirão carcerário lançado pelo CNJ chegou a encontrar um preso provisório que estava há quatro anos aguardando a primeira audiência.

DÉFICIT DE VAGAS AUMENTOU 139%

A superlotação é um dos dramas da população carcerária do Brasil, que cresceu 87,7% em oito anos, saltando de 296.919 para 557.286 detentos, de acordo com dados oficiais divulgados esta semana pelo governo federal, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Entre 2005 e 2013, o déficit de vagas em presídios aumentou 139% no país. Em 2013, faltavam mais 216.033 vagas nos presídios brasileiros.

A aplicação da Lei Antidrogas responde por uma parcela significativa deste fenômeno. Só em maio, no Rio, foram presas 1.505 pessoas com base em seus dispositivos. A Defensoria do Rio, ao arguir a inconstitucionalidade, está convencida de que boa parte deste contingente não deveria estar na prisão:

— O Artigo 28 da Lei Antidrogas, que criminaliza o uso, não prevê a pena de prisão. Propõe a prestação social alternativa. O problema é que, para a polícia, não existe usuário pobre. Se alguém é preso com drogas na favela, ele é logo acusado de tráfico. Então, nossa orientação não apenas sustenta a inconstitucionalidade do artigo, como estimula os defensores a desclassificar a prisão de um consumidor por tráfico — sustenta o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos do órgão.

Na orientação, denominada “Da violação do princípio reserva legal”, a Defensoria alega que o Artigo 28 ofende o princípio da inviolabilidade à vida privada e à intimidade, assegurados pelo Artigo 5º da Constituição. Os defensores tentarão convencer a Justiça de que o consumo de drogas, em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, é uma conduta da esfera individual do cidadão, íntima e privada, na qual ele só faz mal a si próprio. A medida já encontra resistências:

— Descriminalizar é fazer o consumo crescer. E mais usuários significarão mais traficantes. Mais traficantes, mais violência. Por isso, tornar o porte de drogas uma letra morta, acabando com todo tipo de sanção, não vai ser bom. É preciso alertar que a droga é uma das raízes da violência — contesta o advogado e delegado Wladimir Reale, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Rio (Adepol-RJ).

A relação consumo/violência, principal argumento da corrente contrária às mudanças, é contestado por Ilona Szabó de Carvalho, diretora-executiva do Instituto Igarapé, que tem entre as linhas de pesquisa a descriminalização do consumo. Ela garante que não há uma base de estudos que sustente as críticas, ao contrário da violência associada à explosão do encarceramento no país. Embora a taxa de homicídios no Brasil — de 29 por 100 mil habitantes, segundo o Igarapé — seja alta, dentro do sistema prisional brasileiro a situação é explosiva —150 por 100 mil habitantes, enquanto a média global de homicídios fica em 6,2 por 100 mil.

SUPREMO VOTARÁ A QUESTÃO

Foi o esforço de esvaziar as cadeias que levou a Defensoria Pública de São Paulo a questionar, desde fevereiro de 2011, a constitucionalidade do Artigo 28 da Lei Antidrogas. O relator do recurso no STF, ministro Gilmar Mendes, já se manifestou pela repercussão geral da matéria — fará com que a decisão tomada no caso seja aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores em casos idênticos. Porém, ainda não levou o voto ao plenário. A demora fez a Defensoria do Rio buscar um caminho mais curto:

— Não se sabe quando será o julgamento e muito menos o que vai acontecer. Enquanto isso, vários países estão reconhecendo a inconstitucionalidade. Entenderam que uso de drogas não é crime. É uma questão de privacidade. Mesmo sem a palavra final do Supremo, o juiz não está impedido de decidir — assegura o defendor Daniel Lozoya.

A julgar pela resistência que o Conselho Nacional de Justiça tem encontrado para implantar, no país, o projeto “Audiência de Custódia”, não será fácil convencer um juiz de primeiro grau a acolher a tese da privacidade invadida. Ainda que o Brasil seja signatário de tratados internacionais que asseguram ao preso o direito a uma audiência logo após a detenção, ainda há focos de resistência à medida na magistratura. Riscos no transporte dos custodiados e congestionamento das varas penais estão entre os problemas alegados.

40% DE PRESOS PROVISÓRIOS

Pesquisa divulgada esta semana pelo governo federal mostrou que 40% das vagas são ocupadas por presos provisórios, que ainda não têm sentença condenatória. O CNJ está convencido de que muitos deles não deveriam estar atrás das graves, mas a palavra final cabe ao juiz de primeiro grau, o mesmo que agora será confrontado com o pedido da Defensoria.