Ventania

Valor econômico, v. 16, n. 3757, 16/05/2015. Política, p. A6

Marcos Nobre

O vento que vem das ruas, reais e virtuais, não permite a ninguém no sistema político velejar em linha reta. Ao contrário de movimentos como Diretas-Já ou Fora Collor, a energia liberada desde junho de 2013 continua latente e disponível, não se dissipa nem se converte em avanço institucional. Com tamanho vento contra, turbinado pelas péssimas notícias trazidas pelas medidas de ajuste, todo mundo anda de lado, ziguezagueando.

O PSDB vota contra lei aprovada no período FHC. O PT faz oposição às medidas do governo que deveria liderar. Mas as manobras mais radicais vêm mesmo de Eduardo Cunha e Renan Calheiros. Sempre que conveniente, a pancadaria política protagonizada pelos presidentes da Câmara e do Senado usa o discurso do PT contra o governo do PT, o discurso e as promessas de campanha contra a realidade da política de ajuste. Ou o contrário. Se a conveniência do momento exigir, lançam mão do discurso anti-PT que se cristalizou nos últimos anos.

O país que saiu dividido da eleição continua dividido. O que Eduardo Cunha e Renan Calheiros fazem é ziguezaguear entre os dois lados da divisão. De um dia para outro, de uma hora para a outra, mudam repentinamente a posição da vela. Fazem isso um contra o outro, inclusive. Agradam e desagradam algo como a metade do eleitorado a cada vez, mas sem se fixarem claramente em nenhuma das rotas. E assim seguem. Sobrevivendo e, vez por outra, impondo pontos da agenda política de interesses bem postos no bazar do PMDB.

Impasse atual teve origem na eleição de 2014

Essa era a situação habitual antes do Plano Real, antes da estabilização político-econômica do período FHC. Os dois maiores partidos da redemocratização dos anos 1980 sempre foram arquipélagos de interesses, sem capacidade de produzir direção homogênea e duradoura para o país. A partir de 1995, dois polos se formaram para fornecer a essas máquinas partidárias dois princípios organizativos fundamentais: direção e contenção.

O acordo com esse pemedebismo do sistema - também conhecido pela expressão grã-fina "presidencialismo de coalizão" - dizia que os bazares partidários poderiam continuar a se reproduzir encastelados no Estado, mas limitados pelas exigências da estabilização econômica e da implantação de novas políticas públicas de caráter distributivo. Dois pequenos polos dirigentes de situação e de oposição passaram então a disputar a liderança do mesmo enorme condomínio de apoio parlamentar ao governo, seja qual for o governo.

Esse modelo começou a fazer água a partir de Junho de 2013. Desde então, o vento sopra contra o acordão de governabilidade inaugurado pelo Plano Real. O resultado é que, hoje, nem o governo encontra forças para sair das cordas, nem o sistema político tem segurança para declarar o nocaute da presidente. A desaprovação não é desastrosa o suficiente para inviabilizar um governo em início de mandato, nem o apoio ao impeachment é suficiente para convencer o sistema político de que é preciso afastar a presidente (ou a chapa) vencedora da eleição de 2014. (Para não mencionar a indefinição quanto ao estrago potencial da Operação Lava-Jato, ou a incerteza quanto a quem ganharia o quê em caso de impeachment).

Na batalha pela opinião, pelo convencimento amplo em alguma direção clara, a bandeira do impeachment pode surgir como uma maneira de organizar a divisão da sociedade de maneira inequívoca, contra e a favor. Mas, se acontecer, o processo em nada irá se assemelhar ao impeachment de Collor. Será politicamente sangrento, com expressivas demonstrações de força de lado a lado. E, tudo somado, acabará nivelando por baixo a divisão da sociedade que se tem hoje.

Outra possibilidade de reorganização que não a motoniveladora do impeachment pode estar em uma reconfiguração da oposição. Parece que ser de oposição começa finalmente a valer a pena em termos eleitorais. Pela primeira vez em 20 anos, a divisão presente na sociedade estimula forças políticas tradicionalmente adesistas a deixarem o barco do governo. Pela primeira vez em 20 anos, pode ser que se tenha no Congresso uma frente de oposição que não seja meramente simbólica. E pode estar nessa novidade a melhor chance de o próprio governo se reorganizar.

Um dos sinais de reconfiguração da oposição vem das fusões em curso, entre PSB e PPS, entre PTB e DEM. Se essas fusões apontarem no sentido da formação de uma real frente de partidos de oposição, com uma bancada parlamentar expressiva, pode ser que parte da energia da rua passe a se sentir minimamente representada no Congresso. Em termos eleitorais, o líder de uma frente como essa pode até vir do PSDB. Mas isso não é mais o decisivo. O que importa agora é que PT e PSDB não são mais os indiscutíveis partidos líderes do sistema.

Na nova configuração, duas frentes de partidos poderiam passar a representar situação e oposição, em proporções menos distorcidas em relação às porcentagens obtidas pelas respectivas candidaturas na eleição presidencial. A base de apoio do governo deixaria de ser o mesmo megabloco parlamentar de sempre. E a oposição deixaria ser simples franja parlamentar, passando a dispor de uma bancada substantiva.

Dentro de cada uma das frentes de partidos seria criado um sistema de negociações internas bem mais complexo do que as decisões unilaterais de PT e PSDB dos últimos anos. O Congresso poderia ser passar a ser vertebrado por três partidos grandes e três ou quatro partidos médios, organizados em frentes de situação e de oposição.

Não se costuma esperar que um governo se organize em resposta à organização da oposição. Mas a situação não tem nada de costumeiro. Aprovadas as medidas de ajuste, uma diminuição da fragmentação e a organização de uma frente de oposição podem produzir o realinhamento partidário necessário para a sustentação do governo. O sistema deixaria de andar em ziguezague, segundo a lição perene do PMDB: o que importa é aproveitar o vento, venha ele como e de onde vier.