Uma sólida curva e uma frágil nuvem

Valor econômico, v. 16, n. 3748, 05/05/2015. Brasil, p. A2

 Antonio Delfim Netto

Os economistas são perseguidos por um problema de solução muito difícil: tentar deduzir, do comportamento de agentes individuais estimulados a procurar seus próprios interesses, uma lei que combine e descreva a sua "soma". Trata-se de entender como se processa a transmissão da ação microeconômica para o nível macroeconômico. Isso é possível, por exemplo, no ramo da Física que estuda as relações entre o mundo microscópico e o macroscópico. Dois séculos de pesquisas e avanços com experimentos reprodutíveis, ligam o comportamento de um gás perfeito no nível macro (descoberta por Robert Boyle em 1662) ao de suas moléculas (esclarecido por Ludwig Boltzmann em 1877). O comportamento aleatório das moléculas no nível microscópico se expressa, no nível macroscópico, na simplicidade da lei de Boyle: Pressão x Volume = Constante, que se vê no gráfico 1 abaixo. A despeito da aleatoriedade do comportamento das moléculas, no nível micro, se conheço a constante, posso fixar a pressão e determinar o volume do gás no nível macro.

Relações como a de Boyle são o Santo Graal dos economistas que cultivam uma discreta inveja da física. Descobertas - para alguns existem por definição à espera da astúcia econométrica - "explicariam" os comportamentos macroeconômicos por seus "fundamentos" microeconômicos e abririam caminho para a manipulação da realidade pela política econômica. A coisa até parece razoável. Afinal de contas, um grama de gás de hidrogênio, por exemplo, contém nada menos do que 6x1023moléculas. Um número difícil de imaginar. É 1014 (o número 1 seguido de 14 zeros!) vezes maior do que toda a população atual da Terra (em torno de 7x109). Por que, então, não seria possível encontrar alguma relação simples entre o comportamento aleatório dos indivíduos e alguma forma de sua organização do nível macroeconômico?

Cada taxa de inflação gera um intervalo na taxa de desemprego

Que tal, por exemplo, encontrar uma relação no nível macroeconômico entre a taxa de inflação e a taxa de desemprego de uma sociedade de milhões de cidadãos cada um agindo no seu próprio interesse? Pois bem. Em 1958, um arguto neozelandês (A.W. Phillips), usando dados da Inglaterra de 1861 a 1957, "descobriu" uma relação negativa entre a variação da taxa nominal dos salários e a nível de desemprego: quando este era alto a taxa de inflação era baixa e vice-versa. Quase imediatamente outros (Paul Samuelson e Robert Solow), com uma transformação simples, substituíram a variação nominal do salário pela taxa de inflação. Encontraram a mesma relação nos dados do EUA e "confirmaram" a ligação negativa. A alegria durou pouco. Artilheiros de alto calibre (Milton Friedman e Edmond Phelps) puseram em dúvida a existência da curva, agora chamada de "Phillips".

O problema é que a dispersão das observações na curva de Phillips, não sugere uma "curva" (como a de Boyle), mas uma "nuvem" em torno de eventuais curvas "construídas" estatisticamente, como se vê na figura 2. A cada taxa de inflação corresponde um intervalo de taxas de desemprego, o que aumenta o risco e os custos das decisões. Mais complicado, ainda, era o fato que quando se introduzia no modelo as "expectativas" da inflação futura, existia uma "família de curvas", uma para cada "expectativa". Quando a inflação "realizada" fosse igual à "esperada", o nível de desemprego seria uma "taxa natural", ou seja, o "desemprego estrutural": uma taxa de desemprego que nem aumenta, nem reduz a taxa de inflação (a NAIRU = "Nonaccelerating inflation rate of unemployment").

 

 

Não importa a sofisticação do modelo. Reduzido a sua forma mais simples, a taxa de inflação "realizada" seria, então, igual à taxa de inflação "esperada", corrigida por um fator que registra a diferença entre a taxa de desemprego vigente e a taxa "natural" ("estrutural" = NAIRU). Essa correção será positiva (a taxa de inflação crescerá) se o nível do desemprego é menor do que o "natural" e negativa no caso contrário. É a variação da taxa de desemprego ou da taxa "natural" (sob cuja estabilidade há sérias dúvidas) que reduzirá ou aumentará a taxa de inflação. Como é evidente, a taxa de desemprego "natural", se existir, só pode ser alterada por medidas estruturais (do lado da oferta) que, em princípio, flexibilizem e tornem mais eficiente o mercado de trabalho, o que leva algum tempo. Logo, a redução da taxa de inflação no curto prazo deve implicar em algum aumento da taxa de desemprego. O problema é que a taxa "natural" não é observável e sua estimativa sempre será sujeita a erros, o que exige muita informação complementar e muita arte da autoridade monetária.

É preciso aceitar o fato que no Brasil, sem um "ajuste" fiscal crível, acompanhado de políticas salarial, cambial e propostas de reformas adequadas, a simples manipulação da taxa de juros para trazer a expectativa de inflação à meta de 4,5% num horizonte muito mais curto do que o sugerido pelo Banco Central, poderá exigir um desemprego com custo social muito alto.