AS FAVELAS QUE CRESCEM DENTRO DAS FAVELAS

2 jun 2015

MARIA ELISA ALVES 

RAFAEL GALDO

Comunidades mantêm bolsões de extrema pobreza. Para especialistas, condições urbanas acentuam penúria

“Achamos ( comida) no lixo do mercado. Pegamos também carne, resto de mortadela, raspa de queijo. Não tenho vergonha”
Washington de Freitas Morador de um barraco no alto do Morro do Pavão- Pavãozinho “Hoje tenho meu barraquinho para sair do relento. Eu mesma construí. Andei a Barra inteira para encontrar madeira. Se tivesse dinheiro, compraria uma casa para minha filha” Jéssica das Neves Moradora de um barraco de madeira na Cidade de Deus

Com o olhar perdido no horizonte, Maria Eunice Guimarães mastiga um sonho, desses de padaria. A vista é para o mar de Ipanema e Copacabana. Mas, como já dizia a música dos Titãs, “miséria é miséria em qualquer canto”. E Maria Eunice, aos 51 anos, nunca escapou dela. Quando criança, viu os irmãos morrerem de fome. Aos 7, fugiu de casa, segundo ela, porque sua mãe não acreditou que seu padrasto queria estuprá- la. Criou- se na rua. Admirava cartões- postais nas bancas de jornal. E foi parar numa paisagem digna de um deles. Mas a beleza não esconde as feridas ainda abertas em sua vida: mora no ponto mais alto do Pavão- Pavãozinho, 780 degraus morro acima, no pedaço da favela conhecido como Caranguejo, onde predominam barracos de madeira, como o de Maria Eunice, e casas de pau a pique.

FOTOS DE MÁRCIA FOLETTOMiséria de frente para o mar. O casal de catadores Maria Eunice Guimarães e Washington de Freitas, no local conhecido como Caranguejo, no topo do Morro do Pavão- Pavãozinho, em Copacabana: acesso ao barraco tem 780 degraus

Lá estão os mais excluídos, uma espécie de favela dentro da favela. Situação que, como mostra a terceira e última reportagem da série “Os miseráveis”, se repete em outras comunidades da capital. Nesses bolsões, está boa parte dos 178.815 cariocas ( 2,8% da população) que vivem na extrema pobreza, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social. Eles estão quase sempre em lugares de difícil acesso, muitas vezes em situação de risco. No Pavão- Pavãozinho, onde uma casa na parte baixa custa até R$ 200 mil, o barraco de Maria Eunice não tem banheiro ou eletrodomésticos. É o contraste dentro da comunidade, que tem, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ( Pnud), apenas 0,9% de miseráveis.

Sem acesso a programas sociais, Maria Eunice e o companheiro, Washington de Freitas, são “garimpeiros urbanos", sobrevivem do que moradores de Copacabana jogam fora. Quase tudo o que o casal tem foi achado no lixo. Inclusive o sonho que Maria Eunice comia na manhã de 21 de maio.

— Achamos no lixo do mercado. Pegamos também carne, resto de mortadela, raspa de queijo. Não tenho vergonha. Cumpri 17 anos de prisão por roubo e homicídio. Há seis, estou em liberdade. E ganho minha vida honestamente, embora eu já tenha jogado minha carteira de trabalho fora. Ninguém emprega ex- presidiário — conta Washington.

O desemprego no Pavão- Pavãozinho, no entanto, não é dos mais graves. O Diagnóstico Socioeconômico das Comunidades com Unidade de Polícia Pacificadora ( UPP), da Firjan, diz que está em torno de 5%, o sexto menor entre 26 favelas pesquisadas. Mas a escolaridade média é de 5,9 anos.

Pouco estudo é o que impede Jéssica das Neves de avançar. Moradora de um barraco na Cidade de Deus, a jovem, de 25 anos, abandonou cedo a escola. Fugiu de casa, usou drogas e morou na rua. Hoje treme na hora de preencher ficha para emprego: nunca aprendeu a ler e escrever direito. Com R$ 145 do Bolsa Família, mais os biscates, consegue R$ 400 por mês para se sustentar e alimentar a filha Jasmin, de 4 anos, e a sobrinha Raiane, de 12:

— Hoje tenho meu barraquinho para sair do relento. Eu mesma construí. Andei a Barra inteira para encontrar madeira. Se tivesse dinheiro, compraria uma casa para minha filha.

Um terreno e uma casa de alvenaria, Francisca Ernestina Oliveira, de 39 anos, já conseguiu. Mas precisa usar artimanhas que aprendeu no sertão do Ceará para criar seis filhos e dois netos. O lugar em que vive, a Morada 2001, é uma invasão sem luz, água ou esgoto, atrás da comunidade Três Pontes, em Paciência, na Zona Oeste — área que, segundo dados do Pnud, tem a maior proporção de miseráveis na cidade, 9,3% dos moradores. Mesmo percentual encontrado em comunidades como Minha Deusa, em Realengo, e Canal da Ponte Branca, em Santa Cruz, também na Zona Oeste. Condições urbanas que, segundo Marcelo Ribeiro, do Observatório das Metrópoles do Ippur/ UFRJ, em geral, reforçam a situação de miséria.

— É um ciclo vicioso. As más condições urbanas contribuem para a situação de miséria, e a miséria empurra as pessoas para lugares onde as condições urbanas são piores.

Também do Ippur, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro diz que, nas favelas, a localização também impacta a qualidade de vida dos moradores:

— As mais acessíveis, no Centro e na Zona Sul, têm tendência à homogeneidade social. Longe desses locais, quanto maiores, mais chances de serem heterogêneas e terem bolsões de pobreza. Nada que tire a esperança de Maria Eunice: — Sou pura realidade da vida sofrida. Mas, se anoiteceu, uma hora tem que amanhecer.