A Venezuela encalacrada

Correio braziliense, n. 19016, 19/06/2015. Opinião, p. 13

Carlos Pio

Nos últimos 16 anos, com a exceção do futebol, nada melhorou consistentemente na Venezuela. O país tem descido longa ribanceira rumo ao caos desde que o coronel Hugo Chávez, “Presidente Eterno do Partido Socialista Unido da Venezuela”, decidiu inaugurar o Socialismo do Século 21 e perpetuá-lo no poder por meio do estupro das regras escritas e não escritas que organizam os países livres e democráticos. Os lances iniciais de empreitada semitotalitária envolveram a mudança da Constituição e do nome do país.
 
Em resposta a tentativa de golpe de Estado em 2002, Chávez estabeleceu controle absoluto sobre o Legislativo, a Justiça, as Forças Armadas, a imprensa e o setor petrolífero — que responde por 96% do Orçamento. Antes de morrer, em 2013, aboliu o limite que ele mesmo havia criado à reeleição do presidente. Morto Chávez, o sucessor (eleito em pleito extraordinário) passou a intervir diretamente sobre as empresas privadas que processam e comercializam alimentos e sobre a taxa de câmbio. Maduro se cercou por políticos investigados internacionalmente por diversos crimes, inclusive narcotráfico.
 
Desde 2014, o regime vem matando mais e prendendo os principais opositores, inclusive o prefeito da capital do país, António Ledezma. Isso tem provocado mais protestos, dentro e fora do país. O que assusta, nessa escalada, é o apoio de parcela significativa do eleitorado venezuelano ao regime cleptocrata ali instalado. Como se pode explicar o fenômeno? Sentada sobre a maior reserva de petróleo do planeta (10% maior que a Saudita), a Venezuela se beneficiou dos altos preços do óleo cru entre 2001 e 2014. 
 
Para entender a popularidade de Chávez e do chavismo, é preciso considerar o crescimento astronômico do preço do barril de petróleo durante sua presidência e o uso feito das receitas. Quando Chávez chegou ao poder, em janeiro de 1999, o barril custava menos de US$ 15. Em 2008, mais de US$ 140. Em 2009, a menos de US$ 30. Mas, em 2010, o barril era vendido a mais de US$ 80, mantendo-se em torno de US$ 100 entre 2011 e julho de 2014. Desde então, despencou até chegar a US$ 46 em janeiro deste ano e se recuperou um pouco até os atuais US$ 65.
 
Na primeira metade do governo, Chávez perseguiu e demitiu engenheiros da PDVSA e passou a usar os recursos da petrolífera para financiar seu projeto político. O resultado econômico foi a queda significativa e sistemática da produtividade dos campos e até mesmo da produção total de óleo no país, replicando o que já se passara em todos os regimes totalitários. Além dos expurgos na petroleira, o coronel marchou sobre o sistema político, perseguindo oposicionistas, violando a independência do Judiciário e da imprensa e armando milícias urbanas para amedrontar os poucos focos de oposição organizada. Caracas rapidamente se tornou a capital mais violenta do mundo.
 
Petróleo caro, governo popular. Embalados pela riqueza proporcionada pelas receitas de exportação do óleo absurdamente caro, programas sociais focalizados nos venezuelanos mais pobres foram lançados a partir de 1999. Verificou-se, realmente, forte redução da pobreza e da pobreza extrema, melhoria nos indicadores mais elementares de saúde e educação. Em si mesmos, os resultados foram extremamente positivos. Quando se leva em conta, porém, a dimensão do choque positivo do petróleo, a longa duração e o impacto que teve sobre as receitas do governo, percebe-se que a melhoria dos indicadores sociais não acompanhou de perto o crescimento da riqueza. 
 
A educação não melhorou tanto e segue a média da região. A saúde também não melhorou tanto. A criminalidade saiu inteiramente do controle. Há profundo deficit habitacional, apesar dos projetos entregues. Mas o pior mesmo foi que os programas sociais não visavam preparar o cidadão para construir uma sociedade mais harmônica e uma economia mais produtiva e integrada ao mundo, capaz de promover a poupança, o investimento, a diversificação das atividades produtivas. Pouco fizeram para promover o crescimento da produtividade e da inovação, assim como o desejo de trabalhar mais e de forma mais eficiente para enriquecer. 
 
Talvez, justamente por não terem mirado a transformação da mentalidade, é que os programas sociais são, até hoje, entendidos pelos mais pobres como dádiva recebida do “grande líder”. Servem, assim, para entender o apoio político-eleitoral dado a Chávez até 2012, e a Maduro até hoje. Infelizmente, até mesmo os ganhos sociais gerados na fase de opulência vêm sendo corroídos pela falta de investimentos que explica a escassez de produtos de primeira necessidade, pelo aumento estupendo da criminalidade e pela completa falta de perspectiva de normalização da vida social, econômica e política. Pior, com o petróleo mais barato, caem as receitas do governo e aprofundam-se os problemas. E o regime fica cada dia mais parecido com o velho socialismo: autoritário, improdutivo, corrupto e caquético.