Quando contar uma mentira resolve uma confusão diplomática

16 jun 2015

FRANCISCO LEALI E CATARINA ALENCASTRO 

Documentos mostram que subsecretário dos EUA desmentiu informação verdadeira após queixa do governo Collor, em 1990

- BRASÍLIA

ARQUIVO/ 01- 10- 1990 Mal- estar. Collor, à direita, durante encontro com Bush nos EUA: críticas ao Iraque foram vazadas para a imprensa

Documentos ultrassecretos do Itamaraty revelam que, em alguns momentos, vale até mentir para manter as relações diplomáticas. Histórias de inconfidências, mal- entendidos e gafes são relatadas em telegramas que vinham sendo mantidos em sigilo pelo Ministério das Relações Exteriores. Elas são parte de um conjunto de 17 documentos produzidos em 1990, e que veio a público por determinação de uma comissão especial formada por representantes de oito ministérios. O Itamaraty pediu que os papéis, sigilosos por 25 anos, permanecessem mais 25 anos trancados. A comissão especial rejeitou o pedido, indicando que tudo já deveria ser de domínio público.

Entre os textos que o Itamaraty preferia não divulgar estão telegramas assinados pelo então embaixador brasileiro Marcílio Marques Moreira. Eles tratam da confusão diplomática ocorrida após encontro dos presidentes Fernando Collor e George Bush em 30 de setembro de 1990. Após o encontro, um assessor de Bush declarara aos jornalistas americanos que Collor não tinha poupado críticas ao Iraque e a seu líder, Saddam Hussein.

Na época, o Brasil tentava negociar a retirada de mais de cem brasileiros por conta do risco de uma guerra no país. O Iraque tinha invadido o Kwait. As declarações do subsecretário para Assuntos Latino- Americanos dos EUA, Bernard Aronson, foram divulgadas pelas agências internacionais e chegaram ao Iraque, provocando irritação no governo local e também do lado brasileiro.

Marcílio foi se queixar com Aronson, e, segundo o diplomata brasileiro, o americano reconheceu que errou: “Falei demais, me arrependo disso. Devia ter sido mais cuidadoso”, disse o americano, segundo relato do embaixador brasileiro enviado à Brasília. “Desculpe- me por meu erro e gostaria de corrigi- lo. Isso não acontecerá de novo”, prometeu Aronson.

“UMA IMPRECISÃO DE MINHA PARTE”

Segundo o embaixador brasileiro, Aronson perguntou como poderia reparar o erro. Avisou que o governo brasileiro poderia desmentir a história porque não haveria contestação dos EUA. O subsecretário ainda se ofereceu para falar com jornalistas brasileiros corrigindo uma informação que o telegrama mostra que era verdadeira. E foi o que acabou fazendo o americano.

“Foi uma imprecisão de minha parte”, declarou Aronson à imprensa na época, alegando que Collor e Bush apenas conversaram sobre a situação do Golfo Pérsico e que ambos concordaram com esforços da ONU para resolver problemas na região.

Os relatos de Marcílio Marques Moreira estão em um dos 17 documentos que ficariam guardados por mais 25 anos caso vingasse a intenção do Ministério das Relações Exteriores de prorrogar o grau de ultrassecreto. No fim do ano passado, o Itamaraty já conseguira prorrogar por mais 25 anos o sigilo de 472 documentos. O pleito foi aprovado pela Comissão Mista de Reavaliação de Informações ( CMRI), formada por oito ministérios.

Em março deste ano, a CMRI concordou em prorrogar o sigilo de outros 25 documentos, mas pela primeira vez também determinou a desclassificação de 17 textos que o Itamaraty ainda queria manter sob sigilo. No dia 21 de maio, O GLOBO solicitou acesso a esses 17 documentos. No dia 1 º de junho, os documentos receberam carimbo de desclassificados e foram liberados.

Em nota ao GLOBO, o Itamaraty confirmou a desclassificação dos 17 documentos ultrassecretos produzidos em 1990. O ministério informou ainda que decidiu desclassificar outros 78 documentos ultrassecretos que tiveram sigilo prorrogado pela CMRI. O pedido de prorrogação tinha sido apresentado anteriormente pelo próprio Itamaraty à comissão.

Outro conjunto de documentos liberados para divulgação trata de problemas com o Paraguai. Em 1990, o governo vizinho cobrava pagamentos atrasados por conta de contratos de Itaipu. O Brasil atendeu o pedido, depositando parte do dinheiro. O então ministro da Fazenda no Paraguai, Enzo Debernardi, confirmou o recebimento à embaixada em Assunção. Mas pediu que o Brasil mantivesse o assunto em sigilo. Alegou que, por conta de reivindicações salariais de professores, parlamentares poderiam querer aprovar projeto para usar o dinheiro para conceder aumento aos docentes.

O diplomata brasileiro disse que isso não seria possível porque o Brasil vinha sendo criticado na imprensa pelo atraso. O ministro paraguaio pediu, então, que o sigilo durasse, pelo menos, mais quatro dias. O diplomata relatou a conversa ao Itamaraty, mas avisou que esse prazo era irreal, tendo em vista que a discussão do assunto salarial no Congresso paraguaio poderia levar mais tempo.

Para que o governo brasileiro não ficasse refém do pedido paraguaio, o diplomata apresentou sua sugestão ao Itamaraty: vazar a história para um jornal brasileiro, esclarecendo internamente o caso.