‘ Tudo vai ser diferente’

11 jun 2015

STF derruba autorização prévia e libera as histórias que o Brasil foi impedido de conhecer

Em votação histórica, STF rejeita censura prévia e libera, por unanimidade, biografias não autorizadas. Relatora Cármen Lúcia e demais ministros decidiram que o direito à privacidade não pode restringir liberdade de expressão

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal ( STF) rejeitou ontem a exigência de autorização para a publicação de biografias. O julgamento foi marcado pela defesa da liberdade de expressão e pela condenação à censura prévia. “Cala a boca já morreu, é a Constituição do Brasil que garante”, afirmou a ministra relatora Cármen Lúcia. Entre os nove ministros presentes, prevaleceu a tese de que a ampla liberdade de expressão e de pensamento se sobrepõe ao direito à privacidade. “Liberdade de expressão é garantia de democracia”, argumentou o ministro Luís Roberto Barroso. Na mesma linha, o decano Celso de Mello destacou que a Constituição brasileira “privilegia as liberdades do pensamento”. A decisão levará ao público livros que não chegaram às lojas e edições que foram recolhidas, como “Roberto Carlos em detalhes”, símbolo da disputa encerrada pelo STF. “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente”, disse o autor Paulo Cesar de Araújo, citando refrão de um sucesso do cantor. Os biografados que se sentirem ofendidos estão livres para ir à Justiça, como já prevê a lei. O mercado editorial comemorou a decisão do STF.

Decisão histórica. A ministra relatora Cármen Lúcia durante a sessão do Supremo: defesa veemente da liberdade de expressão Em votação histórica, marcada por declarações contra a censura e a favor da liberdade de expressão, o Supremo Tribunal Federal ( STF) derrubou ontem, por nove votos a zero, a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no Brasil. A decisão pode trazer a público livros que foram lançados e recolhidos às pressas, histórias que só puderam ser contadas com trechos suprimidos e edições que nem chegaram às livrarias.

— A Suprema Corte acabou hoje com esse entulho autoritário da censura prévia. Meu livro voltará. E será atualizado — comemorou o historiador Paulo Cesar de Araújo, autor de “Rodecidir berto Carlos em detalhes”, o caso mais célebre de divergências entre biógrafo e biografado. — “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente”.

Para escrever o livro, publicado pela editora Planeta em 2006, o escritor entrevistou dezenas de músicos e amigos do Rei por mais de uma década. Mas a obra foi retirada das livrarias em 2007 após acordo judicial entre cantor e editora. Na queixa- crime, Roberto Carlos reclamou de 14 trechos, incluindo os relatos do acidente que o fez perder a perna e da morte de Maria Rita.

A polêmica afetou também biografias de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Paulo Leminski, Raul Seixas, Geraldo Vandré e até Lily Safra, viúva do banqueiro Edmond Safra.

No julgamento, prevaleceu a tese de que a liberdade de expressão se sobrepõe ao direito à privacidade, alegado por biografados e familiares de biografados que questionaram publicações.

— Cala a boca já morreu — decretou a ministra relatora do caso, Cármen Lúcia.

Em pouco mais de cinco horas, os demais ministros seguiram, um a um, a opinião da relatora.

— Liberdade de expressão é garantia de democracia — disse Luís Roberto Barroso.

Caberá agora à Justiça, em primeira instância, sobre casos em que o biografado sentir- se ofendido ou achar que a obra contém erros.

“Hoje, os brasileiros reconquistaram o direito de livre acesso ao conhecimento sobre sua História”, escreveu Roberto Feith, um dos fundadores da Associação Nacional dos Editores de Livros ( Anel), em nota divulgada à noite. “Estamos certos de que agora, historiadores, pesquisadores e escritores darão continuidade a inúmeras obras adiadas ou interrompidas como consequência das limitações erroneamente impostas às biografias”.

Leia abaixo trechos de biografias recolhidas, limitadas ou jamais lançadas no país.

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Obras que podem chegar ou voltar às livrarias

Conheça trechos de biografias que foram retiradas do mercado, tiveram partes censuradas ou nem puderam ser publicadas no Brasil

ROBERTO CARLOS

“ROBERTO CARLOS EM DETALHES”

De Paulo Cesar de Araújo

Lançada em 2006 pela editora Planeta, foi recolhida em 2007, por queixa- crime sobre 14 partes, 10 de cunho amoroso ou sexual “No interior desse movimentado mundo do sexo, um grande escândalo abalou a corte do rei, embora não o tenha atingido diretamente. Foi em abril de 1966, quando explodiu uma denúncia de orgias sexuais com garotas menores que envolveu artistas como Erasmo Carlos, Carlos Imperial, Eduardo Araújo, além de discjockeys (...) Tudo começou numa quarta- feira, dia 6 de abril, quando o animador de rádio e televisão carioca Luis de Carvalho foi a São Paulo. Naquela noite na La Cave, ele conheceu quatro garotas que ficaram inebriadas com a narrativa que Luis fazia dos bastidores do mundo artístico carioca, de como ele tinha conhecido Roberto Carlos (...) Luis convidou as garotas para comparecerem a uma festa que haveria sábado, no Rio. (...) Luis não esperava que as garotas fossem aparecer.”

PAULO LEMINSKI

“PAULO LEMINSKI — O BANDIDO QUE SABIA LATIM”

De Toninho Vaz

Teve a 4 ª edição, da Nossa Cultura, censurada em 2013 por desacordo com família sobre poemas e novo trecho sobre irmão do poeta

“Pedro estava pendurado com uma corda no pescoço na posição inequívoca de um enforcado, ainda que com os pés no chão e os joelhos dobrados. O corpo pendia apoiado no guarda- roupa, indicando que a corda havia cedido com o seu peso (...) Carlos Augusto Oliveira, o Caco, era vizinho de quarto e um dos últimos amigos de Pedro. Ele afirma ter visto Pedro, dias antes, bastante descontrolado, consumindo uma mistura de álcool, água e limão; cigarro de todos os tipos e drogas injetáveis. Pedro frequentava as madrugadas da pracinha ao lado do cemitério municipal, onde agora existia uma pista adaptada para skatistas. É de Caco também a informação de que Pedro, nesses últimos dias, estava lendo o livro ‘ Elogio à loucura’, de Erasmo de Rotterdam, numa tradução de Stephan Zweig.”

MICK JAGGER

“MICK — A VIDA SELVAGEM E O GÊNIO LOUCO DE JAGGER”

De Christopher Andersen

Edição publicada pela Objetiva em 2015 teve trecho suprimido em acordo com Luciana Gimenez, que teve filho com o cantor inglês

“Como Luciana era uma das poucas jovens atraentes da festa que falava inglês ( além de português, espanhol, alemão, italiano e francês), Jagger acabou por passar boa parte da noite sussurrando no ouvido dela. Em certo momento, Mick disse a seus anfitriões que ele e a jovem estavam indo para o jardim ‘ meditar’. Em vez disso, eles acabaram no canil da mansão, onde — de acordo com o que Luciana teria dito a uma socialite — eles teriam feito sexo. Às três da manhã, Mick partiu em uma Mercedes. (...) Luciana certamente estava disposta a agradar Mick Jagger — um homem muitos anos mais velho que o pai dela. ‘ Tudo o que Mick precisava fazer era telefonar’, disse o amigo e ex- colega de quarto de Luciana Lars Albert.”

( Tradução livre)

MANUEL BANDEIRA

“MANUEL BANDEIRA", DA COLEÇÃO PERFIS DO RIO

De Paulo Polzonoff

Impressa em 2007 pela Relume Dumará, nem chegou às livrarias; a família do poeta censurou trechos sobre boemia e drogas “O ano de 1922 seria para sempre marcado como o ano em que Manuel Bandeira deixaria de vez seu lado monástico e se entregaria aos prazeres da vida cercada por amigos e eventuais mulheres, Nesse mesmo ano, ele viajou para São Paulo a fim de conhecer algumas personalidades do mundo modernista que ainda não conhecia (...) O festerê modernista parece ter animado Manuel Bandeira, outrora um famoso recluso em seu ‘ castelo’ na rua do Curvelo. Em 1922 ele passou a usufruir os prazeres da vida boêmia (...) — ainda mais agora que, mesmo sem querer, ele estava incluído entre os mal- afamados modernistas. (...) Rodeado por bebidas, mulheres, cigarros e amigos de conversa farta, Manuel Bandeira aos poucos deixava de lado o cuidado extremo com a tuberculose.”

LILY SAFRA

“GILDED LILY: THE MAKING OF (...)”

De Isabel Vincent

Publicada nos EUA em 2010, a obra não tem editora no Brasil e é proibida por aqui desde 2013, inclusive em sua versão em inglês. “Gastão Veiga, que conheceu Lily ainda adolescente, antes do primeiro casamento, disse não ter ficado surpreso com o fato de ela ter se casado com um dos homens mais ricos do Brasil antes dos 30 anos. Estava claro para ele que a única filha de Wolf White Watkins tinha sido treinada para casar. ‘ Lily era uma alpinista social, é verdade’, disse Veiga. Os Watkins eram bem de vida sob qualquer aspecto, mas a riqueza era aquém da sonhada por Wolf White Watkins, que na casa dos 20 anos deixou Londres, sua cidade natal, para perseguir fortuna na selvagem América do Sul. Wolf, engenheiro por profissão, morou primeiro no Uruguai, onde encontrou a futura esposa, Annita Nouldelman de Castro. Annita, uruguaia de origem russa e judaica, ainda era uma adolescente quando se casou.”

 
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Editores e biógrafos celebram decisão do STF e já planejam lançamentos

Mateus Campos, Mariana Filgueiras, Nani Rubin, Debora Ghivelder, Luiz Felipe Reis, Fabiano Ristow e Alessandro Giannini

Resultado dá segurança ao mercado editorial e encoraja novos títulos

Para escritores e publishers, a decisão do Supremo Tribunal Federal ( STF) na tarde de ontem teve tom de vitória pessoal. O resultado, segundo eles, estimula a produção de novas biografias e dá segurança ao mercado editorial. Alguns foram além e afirmaram que o resultado amplia as liberdades democráticas no Brasil.

— Só podemos celebrar que o país agora teve sua liberdade de expressão restaurada. Nós ficaremos mais tranquilos para trabalhar como vínhamos fazendo — diz Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras. — Continuaremos trabalhando em biografias de qualidade e com muita responsabilidade na apuração. Nossa postura sempre foi rejeitar biografias sensacionalistas. Temos um trabalho sério, de defender a liberdade de expressão.

Alberto Schprejer, ex- editor e fundador da Relume Dumará, foi um dos afetados pela antiga exigência de autorização prévia para biografias. Ele publicou o livro da série “Perfis do Rio” sobre Manuel Bandeira. O livro de Paulo Polzonoff foi recolhido das livrarias.

— É como a Lei Áurea. Para nós, editores, tem esse significado. Muitos trabalhos foram feitos e não puderam circular. Outros foram inibidos — diz Schprejer.

A escritora Ana Maria Machado, ex- presidente da Academia Brasileira de Letras ( ABL), elogiou os ministros do Supremo Tribunal Federal. Para a imortal, no entanto, é preciso que a reparação em casos de calúnias seja eficiente.

— A ABL certamente comemora essa decisão. O STF não decepcionou o país e a cultura brasileira. É um passo fundamental para nós, escritores. A partir de agora, é fundamental que a Justiça seja rápida em caso de difamação — relativiza.

Para Lira Neto, biógrafo de personalidades como Getúlio Vargas, Maysa e Padre Cícero, foi uma vitória da democracia sobre a censura:

— Foi uma votação realmente histórica. Prevaleceu por unanimidade o bom senso. Ganhou a democracia, perderam os defensores do obscurantismo e da censura. Era a própria memória do país que estava sob ameaça.

Sergio Machado, presidente do Grupo Record, ressaltou que as editoras devem ter responsabilidade com o que publicam. Para ele, o setor terá mais tranquilidade de hoje em diante:

— Eu acho que houve um grande avanço. O que não significa que liberou geral. Continuamos responsáveis pelos livros e pelos conteúdos. O que estou dizendo é que não podemos entender essa decisão como uma autorização para publicar tudo o que é verdade. Há casos em que a verdade pode ser ofensiva e caberá a nós discutir a situação para ver se há risco de processo.

O jornalista Vitor Nuzzi, biógrafo de Geraldo Vandré, cuja obra foi dispensada por editoras, concorda. Para ele, biografias não podem ser sensacionalistas:

— A decisão do STF é positiva em dois aspectos: pela prevalência da liberdade de expressão e por chamar a atenção para a questão da privacidade. A preocupação dos biografados é legítima. E o entendimento é legítimo por ser um chamado à responsabilidade dos biógrafos. Biografia não é fofoca, é documento histórico. Por isso, tem que ser tratada com muita responsabilidade.