Exigência de autorização para biografia é censura, decide STF

11 jun 2015

CAROLINA BRÍGIDO E EDUARDO BRESCIANI 

Decisão não impede que biografados recorram à Justiça pontualmente

- BRASÍLIA- Por unanimidade, os nove ministros do Supremo Tribunal Federal não deixaram dúvidas: exigir autorização prévia para fazer uma biografia é censura. A regra do Código Civil que vigorava até ontem, segundo os ministros, ofendia o princípio constitucional da liberdade de expressão. Porém, na sessão de ontem, os magistrados ponderaram que a decisão não impede quem se sentir ofendido com uma obra de entrar na Justiça depois da publicação, pedindo reparação por eventuais danos sofridos. Não ficaram definidas, no entanto, as formas de reparação. Isso será decidido pelos juízes de primeira instância, na análise de cada caso.

A decisão do STF não invalida decisões anteriores da Justiça. Autores ou editoras que se sentirem prejudicados devem recorrer ao Judiciário, ainda que o caso tenha sido encerrado. O mais antigo integrante do tribunal, Celso de Mello, lembrou que, além de indenização, o ofendido pode pedir à Justiça o direito de resposta.

A relatora, ministra Cármen Lúcia, argumentou, no voto de 120 páginas, que a Constituição Federal garante a liberdade de expressão, de pensamento, de criação artística e científica, além de proibir a censura.

Ela ressaltou ainda que a ampla liberdade de expressão não pode ser suprimida pelo direito das pessoas públicas à privacidade e à intimidade.

— O que não admite a Constituição brasileira é, a pretexto de se manter a intimidade de alguém, abolir- se o direito à liberdade do outro de se expressar e criar obras literárias, especialmente obras biográficas — disse.

Ainda segundo a relatora, a divulgação da vida alheia é usual na sociedade de hoje.

— O buraco da fechadura atrai. Às vezes é mesmo apenas curiosidade malsã. Às vezes é vontade de saber o que há no quarto trancado. Segredo é comichão no olhar. (...) E há as câmeras que, a propósito de segurança, gravam, mostram e esparram- se em redes que repercutem no mundo em questão de segundos o que se quer e o que não se deseja mostrar. O tempo é outro. Não adianta chorar. Sorria, você está sendo filmado — declarou.

Cármen ressaltou ainda que o recolhimento de obras depois de divulgadas é uma forma de censura e, por isso, não poderia ser permitido. O ministro Luís Roberto Barroso concordou — e disse que essa possiblidade só poderia ser considerada em “situações extremas e teratológicas”.

Já os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, presidente do tribunal, defenderam que, ao analisar casos específicos, juízes tivessem o poder de determinar a retirada de circulação de obras com conteúdo inverídico ou ofensivo ao biografado. A decisão do STF não impede que os juízes determinem a retirada de circulação de livros já publicados. Mas os magistrados não poderão impedir a publicação.

O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, falou em nome do Instituto Amigo, do cantor Roberto Carlos. Kakay reclamou da decisão.

Segundo o advogado, o instituto não considera necessária a autorização prévia para a publicação de obras, mas defendeu a possibilidade de se retirar de circulação trechos de livros com informações erradas ou ofensivas em edições futuras. Proposta com esse teor está em trâmite no Congresso Nacional.

— Não é o direito a reparação apenas, mas é necessário ter uma tutela específica para que, na próxima edição, isso não saia — sustentou Kakay.

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil ( OAB), Marcus Vinicius Furtado Coelho, a Constituição garante, para o exercício do direito de intimidade, a possibilidade de busca de reparação na esfera judicial.

— Nos casos de calúnia, ofensas a honra, injúria, difamação, a solução será a indenização. Mas certamente não poderá qualquer censor delimitar qual matéria será objeto de biografia, se é relevante ou não. Todos os fatos devem ter relevância para o biógrafo que está exercendo a liberdade de expressão — afirmou.

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Decisão remove ‘ entulho autoritário’

11 jun 2015

Eduardo Bresciani 

Autor de biografia proibida do cantor Roberto Carlos disse que lançará versão atualizada do livro

Depois de quase nove anos de batalha jurídica, o escritor Paulo Cesar de Araújo comemorou no plenário do Supremo Tribunal Federal ( STF) uma vitória sobre um ídolo seu, o rei Roberto Carlos.

O que significa para você o fim dessa batalha?

É um momento histórico. Evidentemente estou feliz. Não apenas como autor, mas como cidadão, como pessoa e como leitor. A proibição de biografia não prejudicou só aquele que lê, mas aquele que escreve. É um direito à informação, um direito à liberdade de expressão. Isso aqui foi resolvido hoje. Foi o último entulho autoritário que restava no nosso campo jurídico, e acho que a Suprema Corte se manifestou de forma clara, decisiva e definitiva em relação a esse tema. Como disse a ministra Cármen Lúcia: cala a boca já morreu. E eu só acrescentaria uma coisa: daqui pra frente, tudo vai ser diferente.

Fará uma nova biografia atualizada?

Sim, vou procurar atualizar o livro. Não tem mais cabimento esse livro continuar proibido. Quando eu relançar, será numa edição ampliada e atualizada.

A briga jurídica estará no livro?

Tudo isso faz parte da História do Roberto Carlos. Ele sempre se declarou apolítico e pela primeira vez defendeu publicamente uma causa, a da censura prévia. E foi derrotado.

Continua fã do trabalho dele como cantor?

No campo da arte, a gente acaba fazendo a biografia de quem a gente gosta. Não acho a música dele feia porque ele me processou.

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Liberdade histórica

11 jun 2015

JOAQUIM FALCÃO E THOMAZ PEREIRA

Ontem o Supremo acabou com o direito de biografados e seus parentes vetarem a publicação de biografias, seja por interesse monetário, seja porque queiram esconder algum fato, seja porque discordem da interpretação sobre a vida biografada. Com isso, protege- se a liberdade de expressão e, como lembra o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, protegese a liberdade de pesquisar, ensinar e aprender. Assim, o Supremo também acabou com o nepotismo na cultura brasileira.

Confirmou- se que não existe censura prévia no Brasil. No entanto, garantido o direito de publicação, qual a responsabilidade do autor diante do biografado e seus herdeiros?

Os limites de sempre continuam existindo. O Direito Penal proíbe a calúnia, a injúria e a difamação. O Direito Civil reconhece a possibilidade de dano moral. Em caso de vitória judicial, o biografado poderá receber uma indenização, ter direito de resposta, ou mesmo à correção do texto questionado.

Mas seria possível retirar a obra de circulação? Foi essa a principal discordância entre os ministros. Celso de Mello é contra, não admitindo o recolhimento de obras publicadas. Ricardo Lewandowski permitiria a retirada, o que pode ser um desestímulo à editora, mas não impede a difusão da obra nestes tempos de redes sociais imediatas. Luís Roberto Barroso precisou que recolhimento só acontece como última medida, e em casos extremos.

Para que a proteção alcançada hoje tenha algum significado real na vida dos biógrafos e da nossa História, é preciso que esse parâmetro seja levado a sério pelo nosso Judiciário. O ônus da prova deve recair sobre o biografado, e não sobre o autor. A sua liberdade de interpretação de fatos históricos é tão importante quanto a própria liberdade de expressá- las.

Como disse a ministra Cármen Lúcia, “cala a boca já morreu”.