Frágil e sem dinheiro
 
13/07/2015
MARCELLA FERNANDES

O principal programa de promoção da igualdade racial no país sofre com a falta de verbas. Auditoria do TCU identifica problemas em outra iniciativa do governo, o Brasil Quilombola, como a ausência de integração entre os agentes públicos e o descontrole orçamentário

A ausência de dados precisos sobre casos de racismo por parte dos órgãos do governo, como mostrou ontem o Correio, é apenas uma parcela da fragilidade nas ações de combate ao crime no Brasil. Falta dinheiro para promover a igualdade racial. Levantamento feito pela organização Contas Abertas, a pedido da reportagem, revela que a previsão de Orçamento para o Programa de Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade, que reúne uma série de políticas, caiu nos últimos três anos e que apenas 56% da verba foi paga em 2014. Isso se reflete em problemas no monitoramento de medidas na área. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) no Programa Brasil Quilombola, por exemplo, apontou falhas na coordenação da iniciativa. Para especialistas, o comportamento se repete em outras políticas.

De acordo com o TCU, há deficiências na coordenação do Brasil Quilombola pela Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que se reflete em falhas na atuação conjunta dos 11 ministérios que compõem a ação, com falta de integração entre eles. O documento revela ainda o descontrole na execução orçamentária do projeto. O relatório aponta, por exemplo, que foram utilizados 57% dos valores previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2012 para a agenda quilombola, enquanto a Seppir informou ter gasto 99% — naquele ano, 70% dos recursos foram contingenciados pela equipe econômica.

Para os especialistas, a falta de monitoramento das ações de combate e promoção ao racismo é um problema de toda a Esplanada dos Ministérios, uma vez que diversas pastas têm programas voltados para essa finalidade. A maior dificuldade, segundo eles, é o governo assumir que, de fato, há discriminação racial no Brasil, que culmina na morte de jovens negros, e colocar prioridade no enfrentamento à questão. O principal desafio apontado é que a Seppir tem pouco poder político para mobilizá-los. A pasta, afinal, conta com o menor orçamento da Esplanada. São R$ 28,38 milhões para este ano, com o contigenciamento. Uma das funções do ministério é criar políticas afirmativas, a exemplo das cotas raciais, e mobilizar outros órgãos a fazê-lo.

Na avaliação do professor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho, há uma dificuldade grave em avaliar uma série de políticas públicas e ações afirmativas. “Ao mesmo tempo que se colocam leis como a de cotas, o governo não disponibiliza recursos para uma luta antirracista. É incoerência fazer políticas desse tamanho e faltarem recursos para monitorar. A falta de financiamento mostra que falta interesse político”, critica. Para o presidente da Comissão Nacional da Escravidão Negra no Brasil, Humberto Adami, a restrição orçamentária resulta em fraqueza de força política. “Inexistem relatórios de monitoramento e avaliação. A política pública que depende de mobilização de massa, além da elaboração de processo político e legislativo, chega à ineficiência por ineficácia na gestão”, afirma.

Orçamento
Composto por sete ministérios e coordenado pela Seppir, o Programa de Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial teve sua previsão orçamentária reduzida de R$ 105,5 milhões em 2012 para R$ 64,8 milhões em 2014. Já o valor efetivamente pago oscilou de 12% do previsto no primeiro ano analisado, para 66% em 2013 e 56% ano passado, quando foram pagos R$ 36,2 milhões, segundo levantamento do Contas Abertas. Neste ano, houve um avanço na verba disponível, para R$ 87 milhões. Por outro lado, os valores pagos são desanimadores. Nos primeiros seis meses de 2015, foram R$ 7,5 milhões contra 26,4 milhões de janeiro a junho de 2014, o equivalente a 28%.

No levantamento, não constam pagamentos específicos para o monitoramento e avaliação de políticas e programas de promoção da igualdade racial. Em 2012, havia previsão de R$ 250 mil, mas nem um centavo foi pago. Isso não significa que a função não está sendo executada, apenas que não há uma verba específica para ela. De acordo com Antonio Costa Neto, mestre em Educação e integrante do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), esse pode ser um entrave para a realização de pesquisas. “Quando tem orçamento à parte pode facilitar a parceria com universidades, por exemplo”, explica.

Sobre o Programa Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, a Seppir afirmou que “a execução dos limites de empenho (da pasta no programa) estabelecidos durante os três exercícios (de 2012 a 2014) ficou em aproximadamente em 90%” e atribuiu a diferença nos valores pagos no primeiro semestre do ano passado e deste ano arepasses para estados e municípios em 2014 a fim de cumprir o calendário eleitoral. Quanto ao Brasil Quilombola, a secretaria informou à reportagem que adota um sistema de monitoramento, com identificadores únicos, dados padronizados, “já que antes estes estavam espalhados pelo governo em diversos setores”.

Agressões no dia a dia
A fragilidade das políticas públicas, principalmente as que visam à conscientização da população sobre a igualdade racial e o combate ao preconceito, torna recorrentes casos como o do designer de sobrancelha Bruno Vitória, de 23 anos. Ele demorou a perceber a discriminação que sofria até um episódio mais escancarado. Aluno de estética, Bruno estava na universidade quando se sentou em uma bancada ao lado de uma garota. “Aí então ela disse ‘Tá pensando que só porque preto não é mais escravo não apanha mais’. Na hora, fiquei sem reação, fiquei sem chão”, conta.
Diante do constrangimento, o designer diz que decidiu ir em frente e denunciar. Ele registrou o caso na delegacia como injúria racial. De acordo com Bruno, essa foi a primeira vez que foi alvo de uma agressão tão nítida quanto essa, mas que no dia a dia, no trabalho, fica em dúvida se determinadas atitudes diante dele são resultado da cor da pele. “Quando vou atender uma cliente, elas perguntam ‘você é o designer?’. Não sei se é porque sou homem ou porque sou negro ou homossexual”, conta. Para ele, o importante é não naturalizar os episódios de racismo e ir em frente nas denúncias sempre que houver situações de discriminação. “Tem que procurar os órgãos competentes, não podemos ficar calados, nos sentir intimidados e levar certas situações como brincadeira”, reforça.




Ação conjunta
O programa foi lançado em 2004 e tem o objetivo de melhorar as condições de vida das comunidades quilombolas por meio do acesso à terra, reconhecimento de direitos, infraestrutura, entre outros. Onze pastas compõem o programa: a Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir); Casa Civil; e os ministérios da Cultura, do Desenvolvimento Agrário, de Minas e Energia, da Educação, da Saúde, das Cidades, dos Transportes, da Integração Nacional e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Apesar da auditoria do TCU, o Ministério do Planejamento considerou o Brasil Quilombola como exemplo de política pública no mês passado.


“Ao mesmo tempo que se colocam leis como a de cotas, o governo não disponibiliza recursos para uma luta antirracista. A falta de financiamento mostra que falta interesse político”
José Jorge de Carvalho, professor de antropologia da UnB.