Valor econômico, v. 16, n. 3782, 23/06/2015. Opinião, p. A2

 

A real dimensão do desafio fiscal

 

Por José Carlos Gerardo

Em 12 de novembro de 2014 o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou acórdão definindo metodologia para a apuração do resultado primário ajustado (RPA). O acórdão 3084/2014 determinou a apuração do RPA baseados nas monografias: "Receitas Atípicas e Restos a Pagar: implicações sobre o Resultado Primário do Governo Central", vencedora do Prêmio STN de 2010, e "Restos a pagar: implicações sobre a sustentabilidade fiscal e a qualidade do gasto público" vencedora do prêmio SOF de Monografias, de 2007.

Estes estudos apontaram várias distorções decorrentes da utilização de receitas atípicas e do float (defasagem) dos restos a pagar - o caso clássico de "pedaladas" fiscais no jargão dos técnicos em orçamento público - com objetivo de cumprir artificialmente as metas de resultado primário. Propôs-se que tais montantes fossem deduzidos do resultado primário oficial com o objetivo de apurar o resultado primário efetivo.

Nos seus cálculos o TCU apurou que o resultado primário ajustado para o ano de 2013 foi negativo em R$ 43,3 bilhões, ou -0,9% do PIB. Este resultado foi fortemente influenciado por dois fatores: a estimativa dos cancelamentos de restos a pagar, com impacto expressivo, principalmente no resultado do ano imediatamente anterior para o qual é feita a apuração e pelas rubricas consideradas como receitas atípicas. Contando com a preciosa ajuda do tempo para calcular o total de cancelamentos de restos a pagar é possível efetuar estimativas mais precisas para este item para o ano de 2013. Pode-se, igualmente, estimar o total de cancelamentos para o ano de 2015 que influenciarão a apuração do RPA em 2014.

É fundamental que se revertam as benesses concedidas no passado recente, como a desoneração da folha

O TCU, adicionalmente, descontou os dividendos recebidos da Caixa e do BNDES, que embora justificável, difere da metodologia das citadas monografias. Com objetivo de atualizar os valores do RPA conforme metodologias que inspiraram a confecção do acórdão não serão excluídos, nos cálculos efetuados neste artigo, os valores dos referidos dividendos.

Partindo-se do resultado primário do Governo Central divulgado pelo Tesouro Nacional para os anos de 2010 a 2014 de, respectivamente, R$ 78,7 bilhões, R$ 93,0 bilhões, R$ 88,3 bilhões, R$ 77,0 bilhões e - R$ 17,2 bilhões, o equivalente a 2,03%, 2,13%, 1,87%, 1,49% e -0,31 do PIB (com o PIB já de acordo com a metodologia de 2015), é possível obter uma série de resultado primário que espelhe a verdadeira situação fiscal.

O primeiro ajuste é no que tange às receitas primárias obtidas na capitalização da Petrobrás de R$ 31,9 bilhões, em 2010, e as decorrentes da utilização do Fundo Soberano de R$ 12,4 bilhões, em 2012, reduzindo o resultado primário para R$ 46,9 bilhões - 1,21% do PIB - em 2010, e R$ 73,7 bilhões - 1,61% do PIB - em 2012.

O segundo ajuste refere-se ao float de restos a pagar de R$ 24,7 bilhões - 0,63% do PIB - em 2010, R$ 23,8 bilhões - 0,54% do PIB - em 2011, R$ 25 bilhões - 0,53% do PIB - em 2012, 40,6 bilhões - 0,79% do PIB - em 2013 e R$ 9,1 bilhões - 0,16% do PIB - em 2014. Após estas deduções, o resultado primário passa a ser de R$ 54,4 bilhões, R$ 69,3 bilhões, R$ 63,2 bilhões, R$ 36,4 bilhões e - R$ 26,3 bilhões, o equivalente a 1,4%, 1,58%, 1,34%, 0,71% e -0,48% do PIB, respectivamente, para os anos de 2010 a 2014.

O terceiro e último ajuste diz respeito às receitas atípicas de R$ 16,3 bilhões - 0,42% do PIB, R$ 30,8 bilhões - 0,7% do PIB, R$ 17,7 bilhões - 0,38% do PIB, R$ 45,9 bilhões - 0,89% do PIB e R$ 33,6 bilhões - 0,61% do PIB para o período de 2010 a 2014, respectivamente. Subtraindo-se estes valores, teríamos um resultado primário ajustado pelo float e pelas receitas atípicas de R$ 38,1 bilhões, ou 0,98% do PIB, em 2010, R$ 38,5 bilhões, ou 0,88% do PIB, em 2011, R$ 45,5 bilhões, 0,53% do PIB, em 2012, R$ -9,5 bilhões, -0,18% do PIB, em 2013 e R$ -59,9 bilhões, -1,08% do PIB, em 2014.

 

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O resultado primário ajustado pelo float e pelas receitas atípicas indica uma clara deterioração do quadro fiscal no governo Dilma. Os resultados primários do Governo Central divulgados para os governos pós-Real foram de, em média, 0,54% e 1,87% do PIB no primeiro e segundo governos FHC, 2,35% e 2,06% do PIB, no primeiro e segundo governos Lula e de 1,3% do PIB, no governo Dilma. Efetuando-se, no entanto, os ajustes apura-se que o resultado primário ajustado pelo float e pelas receitas atípicas seriam de -0,28% e 1,05% do PIB, nos governos FHC; 2,13% e 0,89% do PIB, nos governos Lula e de apenas 0,14% no governo Dilma.

Um olhar mais atento ao resultado primário ajustado dá uma dimensão do desafio que tem pela frente o Ministro da Fazenda. Em 2014, a despeito da redução do float de restos a pagar para R$ 9,1 bilhões (0,16% do PIB), o total de receitas atípicas de R$ 33,6 bilhões (0,59% do PIB) decorrentes, principalmente, do Refis de R$ 25,5 bilhões e do leilão dos serviços de 4G de telefonia móvel de R$ 5,7 bilhões impõe, para 2015, a premência de elevação da receita fiscal e de contenção dos gastos públicos.

Na ausência de utilização dos mesmos expedientes utilizados até então há reduzido espaço para redução de despesas. Do total de despesas primárias previstas para 2015, de R$ 1,263 trilhão, 94,9%, ou R$ 1,198 trilhão são de despesas obrigatórias. Portanto, o ajuste fiscal passa, necessariamente, pela elevação da receita fiscal que implica ou elevação da carga tributária ou obtenção de receitas extraordinárias.

Dado este cenário, é fundamental que se revertam as benesses concedidas no passado recente, como a desoneração da folha e regalias do seguro-desemprego, dentre outras. Mesmo com a aprovação destas medidas é improvável a obtenção do superávit primário, de 1,2% do PIB, para 2015, sem elevação ainda maior da carga tributária. A conta chegou: ou paga-se com elevação de tributos ou via imposto inflacionário. Alea jacta est.

José Carlos Gerardo é analista de Finanças e Controle da STN/MF. O artigo reflete a visão pessoal do autor e não a posição do Ministério da Fazenda.