Exploração do trabalho infantil não é crime nem leva à prisão

 

O Brasil tem 715 mil presos — nenhum deles condenado por exploração do trabalho infantil. E a explicação para isso é simples: não há na legislação brasileira nenhum artigo que caracterize essa conduta como crime ou estabeleça penas de prisão para quem se aproveita da mão de obra de crianças.

HANS VON MANTEUFFELTrabalho precoce. Menino vende bebidas no Recife: explorador não é preso

Desde 2012, no entanto, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que propõe a tipificação desse crime no Código Penal. O texto do PL 3358/ 2012, de autoria do deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), já passou pelas comissões de Seguridade Social e de Direitos Humanos e tem parecer favorável do seu relator na Comissão de Constituição e Justiça. Apesar disso, deputados que defendem e acompanham a tramitação classificam como improvável sua aprovação em plenário.

— Não é por acaso que esse projeto de lei está tramitando lentamente — diz Jordy. — Há uma corrente que prega, alguns de forma envergonhada e outros de forma mais explícita, ser preferível uma criança trabalhando do que roubando. Mas estamos na sétima economia do mundo. Não existem apenas duas opções: trabalhar ou roubar. A criança pode e deve ir à escola, ler um livro, brincar.

Para o deputado, a criminalização da exploração do trabalho infantil completaria a proteção constitucional ao menor:

— A Constituição limitou a idade para trabalhar. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seguida, garantiu os direitos. Falta uma terceira perna: criminalizar quem viola essas duas leis.

ATÉ PRISÃO LOTADA É DESCULPA

Entre os argumentos dos que são contrários à previsão de mais um crime aparece a superlotação dos presídios. O deputado Jordy já ouviu alegações como a de que os acusados podem ser enquadrados em outros artigos do Código Penal, como os que tratam do aliciamento de mão de obra análoga à escravidão e da exploração sexual.

A deputada federal Érika Kokay (PT-DF), que integra a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, vê na lenta tramitação do projeto resquícios do debate acirrado sobre a redução da maioridade penal.

— O movimento que vemos hoje na Câmara é o de um ataque à doutrina da proteção integral dos menores — diz Érika. — A discussão sobre a redução da maioridade penal terá derivações. Abrirá um caminho que pode levar, por exemplo, à redução da maioridade laboral.

Aos olhos do Ministério Público do Trabalho, a tipificação do crime de exploração do trabalho infantil ajudaria a reduzir os números revelados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, em 2013.

—Os procuradores do trabalho abriram uma frente de luta para que esse crime seja tipificado. É muito ruim não ter ninguém preso no Brasil por explorar a mão de obra de um menor. Por enquanto, na esfera trabalhista, vamos aplicando multas e assinando TACs (termos de ajuste de conduta) — diz Danielle Kramer, procuradora do Trabalho no Rio.

20 DENÚNCIAS POR SEMANA

Segundo Danielle, só na capital fluminense, o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebe entre 20 e 30 denúncias por semana.

— Há muitos casos na Zona Oeste da cidade. Também há muito emprego de mão de obra infantil em territórios que acabam de ser pacificados e onde a oferta de comércio e serviços só agora começa a florescer — diz a procuradora.

Sueli Bessa, procuradora e coordenadora de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT do Rio, aponta ainda outras áreas em que esse tipo de exploração é frequente:

— Observe o comércio nas linhas Amarela e Vermelha na hora do rush. Em Seropédica, há denúncias de exploração sexual perto da Via Dutra. Em Campos, há crianças e adolescentes trabalhando nas vans, no transporte clandestino.

Sueli ainda alerta para outro problema: o déficit de auditores para fazer a fiscalização.

— Onde o Estado não chega, não consegue detectar o problema e não pode agir sobre ele — lamenta. 

 

‘Precisamos fazer um esforço dez vezes maior’

 

Qual o panorama do trabalho infantil hoje?

Já ficou evidente que a meta que o Brasil assumiu junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) de erradicar as “piores formas de trabalho infantil” até o fim deste ano não será cumprida e que ainda há muito caminho pela frente se quisermos alcançar a meta de 2020, que visa à eliminação completa do trabalho infantil. Entre 2012 e 2013, o número de crianças e adolescentes trabalhando caiu de cerca de 3,5 milhões para 3,2 milhões. A redução foi, portanto, de umas 330 mil pessoas. Para atingirmos a meta da erradicação plena, ainda precisamos fazer um esforço dez vezes maior. Há necessidade de uma mobilização. De uma tomada de consciência geral.

Quais são as “piores formas de trabalho infantil”?

Segundo a Convenção 182 da OIT, são as degradantes, aquelas com as quais a sociedade não pode mais conviver. Entre elas, estão a escravidão ou o trabalho em situação análoga à escravidão, a exploração sexual, o recrutamento para o tráfico e a produção de entorpecentes, fora os trabalhos que podem prejudicar a saúde e a segurança da criança. O Brasil possui a maior lista de atividades desse tipo em todo o mundo. São 89.

Que setor mais emprega crianças e adolescentes?

No Brasil de hoje praticamente não se ouve falar de trabalho infantil na atividade industrial. Por outro lado, a vulnerabilidade no mercado informal é cada vez maior. Nas feiras, isso fica evidente. Outro desafio é o trabalho infantil doméstico, que é proibido. No interior, há casos de pessoas que levam crianças e adolescentes para trabalhar em casa, na cidade grande, alegando que elas terão mais oportunidades, mas isso é um erro. Elas não estão dando uma vida melhor, estão tirando a chance de essas crianças se desenvolverem da forma correta.

O que deve ser feito?

Faltam oportunidades de formação permanente tanto por parte das empresas quanto por parte do serviço público. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem um programa de aprendizagem e acaba de formar sua primeira turma. Foram 23 adolescentes com idades entre 14 e 16 anos que trabalharam com carteira assinada e recebendo um salário mínimo por dois anos. Vimos aqui a mudança de paradigma deles. Quatro foram aprovados no vestibular. Um passou para a Universidade de Brasília ( UnB). Eram pessoas que viviam em famílias com renda de, no máximo, dois salários. Também faltam escolas em tempo integral. Os pais trabalham o dia todo, mas as crianças só estudam meio dia.

O TST julga muitos casos de trabalho infantil?

É muito raro que um caso chegue aqui. As vítimas estão em estado de penúria econômica, não têm conhecimento ou acesso às políticas públicas de defesa. Logo, nem lhes passa pela cabeça recorrer ao Judiciário. Esse é outro desafio que temos.