MUITAS DENÚNCIAS E POUCAS PUNIÇÕES NO UNIVERSO DOS SINDICATOS

 

Num mundo fechado, onde os principais agentes de fiscalização são, em boa parte, ligados aos próprios dirigentes, mesmo casos de repercussão envolvendo irregularidades e crimes nas entidades que representam os trabalhadores acabam dando em nada ou quase nada. Um exemplo emblemático é o do Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo ( SindiMotoristas), alvo de investigações nos últimos 15 anos. Polícia e Ministério Público apuraram desde a legalidade de greves a mais de uma dezena de assassinatos, ligação com crime organizado e indícios de desvio de dinheiro. As denúncias envolveram 19 sindicalistas, inclusive o atual presidente, Valdevan Noventa, e parte da diretoria. Até agora, ninguém foi punido.

A principal investigação começou em 2003, na Justiça Federal. Naquele ano, vieram à tona denúncias de que integrantes da diretoria teriam recebido dinheiro de donos de empresas de ônibus para organizar greves. Segundo o Ministério Público, paralisações realizadas em 2003 foram arquitetadas pelos patrões para pressionar a Prefeitura de São Paulo a aumentar os subsídios pagos às viações.

A diretoria do sindicato sempre negou. Dezenove pessoas chegaram a ser presas preventivamente, entre elas Edivaldo Santiago, Isao Hosogi, o Jorginho, e Noventa. O trio comandou a associação por uma década. Nas eleições de 2013, eles formaram duas chapas opostas. O pleito foi marcado por um tiroteio que deixou oito feridos e adiou a votação. A eleição só terminou depois que a PM fez a escolta das urnas.

Outro escândalo surgiu em 2009. A acusação então era de que um grupo de diretores teria montado um esquema de desvio de dinheiro do plano de saúde, que renderia aos envolvidos entre R$ 400 mil e R$ 500 mil por mês. A suspeita era de que fossem desviados R$ 10 de cada R$ 50 pagos pela prefeitura à entidade como forma de subsidiar o plano de saúde dos trabalhadores. Um vídeo, obtido pelos promotores, mostrava um ex- diretor negociando propina com o representante do plano de saúde. A investigação não gerou prisões.

Dois dos 19 diretores acusados de corrupção foram assassinados no espaço de um mês em 2010: Sérgio Augusto Ramos e José Carlos da Silva. Ramos chegou a gravar um vídeo dizendo que Jorginho, então presidente da categoria, era o único interessado em sua morte. Desde 2002, 16 pessoas ligadas ao sindicato morreram — a maior parte dos homicídios sequer foi esclarecida.

VIAGEM POR CONTA DA ENTIDADE

No mesmo ano, Noventa foi acusado de mais um crime: teria usado a cooperativa de motoristas de vans que chefiava em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, para lavar dinheiro do principal grupo criminoso da favela de Paraisópolis.

Em 2012, nove anos após o início das investigações, o juiz federal Toru Yanamoto decretou que os crimes investigados já tinham prescrito, arquivou o processo e encaminhou os autos para a Justiça Estadual, que começou a investigar o sindicato praticamente do zero. Segundo o Ministério Público Estadual, ainda não foi oferecida denúncia porque há um inquérito aberto no Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado ( Deic).

Por meio de sua assessoria de imprensa, o SindiMotoristas informou que não há nenhum processo em andamento. O GLOBO não conseguiu contato com Noventa.

Outro caso interessante é o do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres ( CNTTT), Omar José Gomes, que tem mais de 90 anos e ocupa o cargo há pelo menos 15. Em março de 2008, o dirigente não teve pudores em admitir em entrevista ao GLOBO que, entre outras extravagâncias, levou a mulher para visitar parentes em Portugal com dinheiro da entidade. A declaração foi dada após terem chegado ao Ministério Público do Trabalho ( MPT) denúncias que iam dos atos em benefício próprio à concessão de empréstimos a outros sindicatos sem garantia.

Sete anos depois, Omar segue na presidência da entidade e ainda acumula a vice- presidência da Nova Central Sindical de Trabalhadores ( NCST), que só no ano passado recebeu R$ 22,1 milhões de Contribuição Sindical. As denúncias contra o dirigente culminaram numa ação civil pública, promovida pelo MPT, que, por sua vez resultou num acordo judicial, com mais de uma dezena de itens a serem cumpridos.

Entre as cláusulas, há até uma que deveria ser óbvia: “A CNTTT compromete- se a abster- se de utilizar recursos da confederação no custeio de finalidades tais como viagens de lazer a diretores, conselheiros, bem como custear despesas de acompanhantes”. A principal consequência prática foi a aplicação de uma multa de R$ 110 mil por “danos morais coletivos”, repassada a uma associação de pacientes com câncer. O curioso: a multa foi paga com dinheiro da própria CNTTT. Omar foi procurado, tanto através da Nova Central quanto da confederação, mas não retornou as ligações. A informação obtida pela reportagem é de que ele estaria hospitalizado.

O procurador Carlos Solar, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional da Liberdade Sindical ( Conalis) do MPT, afirma que os problemas dos sindicatos passam pela falta de liberdade, democracia e representatividade.

— Sabemos de diversas entidades que tentam impedir a filiação de trabalhadores. O Sindicato dos Comerciários do Rio, que gerou tanto problema, tem menos de 0,1% de seus trabalhadores sindicalizados. Sabemos de casos de sindicatos que cobram “joia” para a filiação e outros que adotam o discurso da facilidade, mas que criam impedimentos como a falta de formulários, de funcionários para assinar a filiação dos trabalhadores.

Solar afirma que há sindicatos, como o de vigias portuários do Rio, que estão sem eleições há cinco anos. Procurado por mais de uma semana, nenhum representante da entidade foi localizado. O procurador também conta que muitos sindicatos não divulgam sequer seus estatutos e regras eleitorais, o que serve para perpetuar uma pessoa ou grupo no poder:

— Conhecemos ao menos dois casos em que, após o MPT atuar e as regras mudarem, a situação perdeu com menos de 20% dos votos. Ou seja, a diretoria não representava a categoria.

 

EM SP, O ‘ MILAGRE’ DA MULTIPLICAÇÃO

Uma cidade não pode ter dois sindicatos que representem a mesma categoria. Mas a Constituição oferece uma alternativa a esse impedimento: a possibilidade de desmembrar entidades que negociam em nome de mais de um grupo de trabalhadores. Foi essa a sacada que Ataíde Francisco de Morais teve em 1996, quando fundou o Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Refeições Rápidas de São Paulo ( Sindifast).

A ideia deu tão certo que Ataíde já abriu sindicatos semelhantes em ao menos duas cidades e passou a administração deles para pessoas de sua família. Também fundou uma federação para incentivar a criação de outras entidades para a categoria. Finalmente, teve seus ganhos patrimoniais investigados pelo Tribunal de Contas da União ( TCU). Segundo seus advogados, ele nunca foi declarado réu em processos por enriquecimento ilícito.

A história de Ataíde começa em 1996. Até então, funcionários de empresas como o McDonald’s eram representados pelo Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes e Lanchonetes de São Paulo ( Sinthoresp), que briga na Justiça há 18 anos, sem sucesso, pelo direito de recolocar a categoria sob seu guarda- chuva. Em diversas ações, a Justiça entendeu que a atividade de fast food é diferente daquela de um restaurante convencional.

Então morador da periferia de Osasco, na Grande São Paulo, Ataíde se uniu a outros trabalhadores para criar o sindicato. Em quatro anos, conquistou o registro no Ministério do Trabalho, o direito de negociar com o sindicato patronal, o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo ( Sinhores- SP) e a possibilidade de arrecadar o imposto sindical de toda a categoria. O Sindifast estima que representa atualmente cerca de 10 mil trabalhadores na capital paulista.

O desmembramento foi considerado uma forma de beneficiar os patrões, segundo sindicalistas ouvidos pelo GLOBO. O sindicato patronal continua sendo o mesmo para as duas categorias, embora os salários e alguns benefícios sejam diferentes. O advogado Emerson Xavier dos Santos, que representa Ataíde e o Sindifast, discorda:

— Em um primeiro momento, os pisos salarias do fast food foram piores que os de trabalhadores de bares e restaurantes — diz o advogado, que continua: — Mas hoje isso não acontece. Há pisos salariais até maiores em alguns casos.