Forçados a sair

12 jul 2015

CRISTINA TARDÁGUILA, FLÁVIO ILHA, MARCELO REMIGIO E RENATA MARIZ

Desastres naturais, violência e obras de infraestrutura deixarão ao menos 1,6 milhão sem moradia

-RIO, PORTO ALEGRE E BRASÍLIA- Imagine o tamanho da comoção nacional se todos os habitantes de Florianópolis, Cuiabá e Aracaju fossem obrigados a abandonar suas casas. Ou se cada um dos moradores de Porto Alegre tivesse que deixar sua residência para sempre. O Brasil já enfrenta um drama social desse porte. Silenciosamente.

Um estudo do Instituto Igarapé, que analisa segurança pública e desenvolvimento social no Brasil, estima que o país terá ao menos 1,6 milhão de pessoas deslocadas entre 2009 e 2016. São cidadãos forçados a deixar suas casas por causa de obras de infraestrutura, desastres naturais e pelo avanço da violência, nessa ordem, diz o canadense Robert Muggah, diretor de pesquisas da entidade. Os números impressionam, mas não podem ser confrontados com estatísticas oficiais. Os ministérios da Integração Nacional e das Cidades reconhecem que não há no país um cadastro de famílias deslocadas.

Especialista em segurança e desenvolvimento, Muggah levou esse drama social às páginas do “Journal of Refugee Studies”, publicação sobre o estudo de refugiados da Universidade de Oxford. Na pesquisa “O deslocado invisível”, aponta não só o tamanho do problema, mas as causas e a dificuldade das autoridades brasileiras de lidar com o tema.

— O Brasil vive um paradoxo — diz Muggah, em seu escritório no Rio. — Tem uma grande preocupação com os refugiados que recebe (hoje abriga 7.948), mas uma enorme negligência em relação a seus próprios deslocados. O Brasil não tem uma legislação sobre o tema. Não elaborou sequer uma definição sobre o que é ser um deslocado aqui.

Para realizar seu estudo, Muggah adotou o conceito internacional. Computou as pessoas que foram forçadas a deixar suas residências sem chances de voltar a viver nelas. Estão incluídos no grupo pessoas reacomodadas por indenização ou que recebem aluguel social.

— Em linhas gerais, falamos dos que foram expulsos, dos que não tiveram outra opção.

O estudo de Muggah indica que a principal causa de deslocamento no Brasil são as obras de infraestrutura. Ele lembra que a relatora independente das Nações Unidas sobre Direito à Moradia Adequada, a urbanista brasileira Raquel Rolnik, criticou o país na preparação para a Copa do Mundo. A estimativa na época era que o evento deslocaria 170 mil pessoas. A construção de usinas hidrelétricas é outro fator de remoção. Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), só a Usina de Belo Monte, iniciada no Pará em 2011, deslocou 40 mil pessoas.

Dados do Internal Displacement Monitoring Centre (IDCM), ONG que monitora o fenômeno no mundo, situam o Brasil em 15º lugar no ranking de países com mais pessoas deslocadas por catástrofes naturais. Entre 2008 e 2012, a média foi de 280 mil pessoas por ano. Entraram nessa lista os deslocados pelas chuvas na Região Serrana do Rio em 2011.

— O grupo afetado por desastres naturais tende a aumentar. O planeta fica mais quente, e o nível das águas sobe. Em Nova York, já discutem o que fazer com esses futuros deslocados. Aqui, não — alerta Muggah.

Há ainda as pessoas expulsas de casa pela violência. Não há dados concretos em relação a isso no Brasil, mas o diretor do Igarapé diz que, nos países que acompanham de perto o fenômeno, como a Colômbia ( leia ao lado), a curva de homicídios acompanha a de deslocados:

— Estão no Brasil 13 das 50 cidades mais perigosas do mundo, levando-se em conta a taxa de homicídios — diz o canadense, citando outras pesquisas do Igarapé. — Há uma relação muito íntima entre violência letal e deslocamentos. Pense: o que acontece num bairro com assassinatos em série?

MINISTÉRIO DEFENDE LEI SOBRE O TEMA

Segundo o Ministério da Integração Nacional, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil não tem números de deslocamentos internos “por se tratar de uma consequência indireta dos desastres naturais”. O Ministério das Cidades diz que, em 2013, editou uma portaria que fixa procedimentos a serem adotados em deslocamentos provocados pela execução de programas sob sua gestão, entre eles o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas a pasta frisa, em nota, que considera “de fundamental importância a edição de legislação nacional que trate essa questão específica (deslocamento interno) de maneira uniforme”.

O BNDES, que financiou 14 hidrelétricas nos últimos cinco anos, informou que seus desembolsos estão condicionados à apresentação de licenças ambientais, com planos de reassentamento para famílias deslocadas. O Banco Mundial diz que tem uma política de salvaguarda sobre reassentamento involuntário que inclui na avaliação o acompanhamento do reassentamento e monitoramento dos projetos que financia.

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A DÍVIDA DE R$ 300

Três meses atrás, o recado chegou: os traficantes mandaram avisar que matariam o jovem de 28 anos por conta de uma dívida de cerca de R$ 300 que não havia sido saldada. A ameaça foi transmitida pela mãe do rapaz, que acompanhou, aos prantos, a saída forçada de seu filho da casa da família. Com algumas peças de roupa na sacola, o jovem deixou Paranoá, cidade do Distrito Federal marcada pela violência provocada pela briga de gangues, e se mudou para uma cidade goiana — local que, por questões de segurança, não será identificado. O rapaz também não mostra seu rosto. Só fala sobre o assunto no anonimato. Para ele, de nada adiantaria saldar a dívida, que cresce na velocidade dos juros do tráfico. — É como se fosse uma questão de honra. Eles me matariam para dar o exemplo. Se eu aparecer para pagar, o cara acaba comigo e ainda leva o dinheiro. O que vale lá hoje em dia é a minha pele. Não posso botar os pés no Paranoá — lamenta. O jovem diz que sente falta da companhia da mãe e dos três irmãos, com quem dividia a casa. Sabe que cometeu erros antes de ser expulso, mas critica a forma violenta de resolver problemas na cidade onde cresceu.
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A ENCOSTA E AS PEDRAS

 

— Foram 18 anos para minha casa ficar pronta e, numa noite, a chuva acabou com o meu sonho. Venho colocar comida para os cachorros dia sim dia não porque eles não deixam esse lugar. Continuam guardando aquilo que um dia foi nossas casas. Francisco Oliveira tem 52 anos. Das nove casas do bairro Alto da Serra, em Petrópolis, onde ele morava, sobraram apenas as paredes e as lembranças. Na madrugada de 18 de março de 2013, um temporal provocou um deslizamento que matou duas pessoas e obrigou 272 famílias a abandonar seus imóveis. — Agora, paro aqui na varanda e olho para a serra. A lágrima cai, e eu vou embora. Cada irmão foi para um lugar — conta Oliveira. — Fui vencido pela natureza. A Rua Otto Reimarus, onde moravam os deslocados pelo desastre natural daquela noite, é hoje um cenário sombrio. Há imóveis vazios e um silêncio que incomoda. Das famílias atingidas, 39 foram indenizadas por um programa que une prefeitura, governos do estado e federal. Oliveira ainda não foi contemplado. Mora de aluguel a 40 minutos dali.

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A PISTA DO AEROPORTO

 

Há três anos, o pedreiro Manassés Silva de Melo, de 24 anos, incorporou à sua vida uma classificação que mal entende. É um “adensado”: — Nem quero saber o que isso significa. O que eu quero mesmo é a minha casa de volta. No vocabulário da prefeitura de Porto Alegre, “adensado” é o maior de idade filho de um deslocado urbano. É alguém que terá que esperar sua vez para obter sua casa própria. Até 2012, Manassés dividia um terreno na Vila Dique, Zona Norte de Porto Alegre, com sua família. Nele, havia três casas: uma do pai, uma do irmão e uma dele. O espaço, no entanto, teve que ser abandonado para dar lugar à ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho — que até agora não saiu do papel. Como indenização, o pedreiro receberia uma unidade no conjunto habitacional construído para o reassentamento. Mas só seu pai, José Melo, e seu irmão mais velho tiveram direito à moradia. — Prometeram que em dois meses a situação se resolveria, mas lá se vão quase três anos — reclama. Assim, Manassés, a mulher e o filho pulam de casa em casa durante o dia. Na hora de dormir, apertam-se no sobrado decorado pela mãe dele ou na casa de sua tia. A prefeitura pouco pode fazer. Diz que o critério de atender apenas um filho adulto por família deslocada foi definido em conjunto com a comunidade. Manassés terá, portanto, que esperar um pouco mais.

 

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Colômbia e Peru: leis de proteção

 

Legislação de países vizinhos define quem são os deslocados

Enquanto o Brasil não tem uma legislação específica para os deslocados, em países vizinhos como Colômbia e Peru foram criadas leis que definiram quem integra esse grupo e quais são as ações de apoio.

Pela legislação colombiana, deslocado é toda pessoa forçada a migrar dentro do país, abandonando sua casa ou atividades econômicas, depois que sua vida, integridade física, segurança ou liberdade foram violadas ou passaram a ser ameaçadas, em situações de conflito armado, distúrbios e tensões internas, violência generalizada, violações dos direitos humanos e humanitário. Segundo o texto, o Estado é responsável pelas políticas públicas de prevenção do deslocamento e de proteção do deslocado. O governo colombiano aponta que, entre 2008 e 2012, foram deslocadas só pela violência pelo menos um milhão de pessoas. Do total, um terço é de crianças e jovens entre 5 e 17 anos. Se levadas em conta outras causas, o número chega a 6 milhões.

No Peru, há o Ministério da Mulher e das Populações Vulneráveis, responsável pela prevenção e proteção dos deslocados. Suas ações também estão previstas em lei. Lá, o deslocamento ocorre quando uma pessoa é forçada a abandonar sua casa como resultado ou para evitar os efeitos de conflitos armados, violência generalizada, violações de direitos humanos e desastres naturais, inclusive por intervenção do homem. O Registro Nacional de Pessoas Deslocadas do Peru trabalha com um total de 50,8 mil deslocados, das quais 58% são mulheres. A lei peruana prevê ajuda do governo federal aos governos regionais e locais para lidar com o problema.