Título: Futuro sobre a mesa
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 01/09/2011, Mundo, p. 22

Rebeldes negociam com potências ocidentais e países emergentes o apoio à transição democrática na Líbia, durante conferência em Paris. Filhos de Kadafi divergem sobre possibilidade de rendição

Dezenas de milhares de líbios oram na Praça dos Mártires, onde Kadafi costumava discursar para a multidão: sinal dos tempos

Na véspera do 42º aniversário da chegada de Muamar Kadafi ao poder na Líbia, seus opositores traçavam ontem um futuro para o país sem o ditador, negociando com a comunidade internacional um apoio à transição democrática, mas sem interferência militar estrangeira. As conversações prosseguem hoje durante a conferência dos Amigos da Líbia, em Paris, na qual cerca de 60 delegações se reunirão com o chefe do Conselho Nacional de Transição (CNT), Mustafa Abdul Jalil. O encontro poderá dar ao órgão político dos rebeldes sua primeira plataforma internacional. O Brasil enviará Cesário Melantonio Neto, embaixador no Egito, como representante do governo. O diplomata é o responsável pelo diálogo entre o Itamaraty e os rebeldes. Os demais países do Brics (bloco formado por Rússia, Índia e China) também participarão da reunião.

O evento de hoje ¿ coliderado pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, e pelo premiê britânico, David Cameron ¿ deverá abordar a política e a economia. O chanceler da França, Alain Juppé, instou o CNT a divulgar o "caminho político que seguirá e listar as demandas do país" para estabelecer um estado de direito. Ontem, líderes que comandam interinamente a Líbia rejeitaram a participação militar internacional no país, segundo o enviado especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Ian Martin. O CNT informou que o país não precisa de ajuda externa para manter a segurança, mas deve solicitar auxílio para criar uma força policial e organizar eleições, previstas para ocorrer 240 dias após declarada a "libertação do país".

Ainda ontem, um dia após o ultimato dado pelos rebeldes a Kadafi para a entrega pacífica de algumas cidades, um dos filhos de Kadafi enviou uma mensagem em tom desafiador aos opositores. Saif Al-Islam fez um apelo à "resistência" e disse que seu pai está bem. "Falo a vocês do subúrbio de Trípoli. A resistência continua e a vitória está próxima", afirmou Saif, em mensagem de áudio divulgada pela rede de tevê Arrai, com sede em Damasco. Ele ameaçou os rebeldes e assegurou que "20 mil homens armados" os aguardam se tentarem atacar Sirte, a cidade natal de Kadafi.

Contradição Enquanto um dos herdeiros fala em resistir, outro pode estar pensando em se render. O chefe das forças contrárias a Kadafi em Trípoli, Abdel Hakim Belhadj, revelou que Saadi ¿ o terceiro filho do ditador ¿ telefonou-lhe e propôs uma oferta de rendição. "Hoje (ontem) tive uma conversa por telefone com Saadi, na qual pediu para fazer parte da revolução. Ele quer garantias de que poderá voltar para seu povo e para Trípoli", disse Beldhaj à rede de tevê Al-Jazeera. No fim de semana passado, foi divulgado que Saadi tinha sido capturado pelos rebeldes, mas esclareceu-se mais tarde que ele estava desaparecido, como vários outros membros da família de Kadafi. Na segunda-feira, a segunda mulher do coronel e três de seus filhos foram abrigados na Argélia pelo governo daquele país.

Kadafi, cujo paradeiro continua desconhecido, chegou ao poder na Líbia em 1º de setembro de 1969, com um golpe de estado que depôs o rei Ídris I. O jovem militar, com 27 anos à época, passou a ser o chefe da instituição governamental, o Conselho do Comando Revolucionário. Hoje, ele é procurado em seu próprio país. O comandante militar do CNT declarou, em entrevista à agência de notícias France-Presse, que há 80% de certeza que Kadafi esteja na cidade de Bani Walid, a sudeste da capital Trípoli. Ahmed Darrat, que assumiu o Ministério do Interior enquanto um novo governo não é eleito, afirmou à mesma agência que os rebeldes têm o "direito de matar" o ditador. O comando anunciou ainda a prisão de Abdelati Al-Obeidid, ministro das Relações Exteriores de Kadafi.

Em Trípoli, na outrora chamada Praça Verde ¿ agora rebatizada de Praça dos Mártires ¿, milhares de pessoas celebraram o fim do jejum do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos. Homens, mulheres e crianças se encontraram diante do Castelo Vermelho, uma fortaleza cuja muralha costumava ser usada como tribuna por Kadafi para falar a seus partidários.