Jogo de cena

 

Documentos oficiais revelam que empreiteira conseguiu vencer licitação para terraplanagem em Abreu e Lima pelo preço pretendido por ela; visita de Lula ao canteiro de obras é tratada como ‘teatro’

HANS VON MANTEUFFEL/04-09-2007Em cena. O então presidente Lula, com José Gabrielli, participa do início das obras de terraplanagem de refinaria em PE: segundo e-mail de diretor, evento em 2007 era “teatro”

E-mails de um diretor da Odebrecht apreendidos pela Lava-Jato reforçam indícios de que a empresa tinha acesso a informações privilegiadas na Petrobras. Em troca de mensagens de 2007, o diretor Rogério Araújo, que está preso, menciona informações sigilosas da estatal e combina com outros executivos da empresa estratégia para aumentar o preço de obra de terraplanagem da Abreu e Lima. Documentos oficiais da Petrobras, consultados pelo GLOBO, mostram coincidência entre os e-mails, a escolha da Odebrecht e o valor da obra pretendido pela empreiteira. Em outra mensagem, o diretor trata da visita do então presidente Lula ao canteiro de obras como “um teatro”. -SÃO PAULO E RIO- A íntegra de um relatório da Polícia Federal, anexado esta semana a um dos inquéritos da Operação Lava-Jato que investigam a Construtora Norberto Odebrecht, comprova declarações de delatores de que a maior empreiteira do país tinha acesso a informações privilegiadas da Petrobras e o poder de influenciar licitações da estatal. É o que mostra o objeto principal do relatório: uma série de e-mails trocados entre diretores da empreiteira com relatos sobre encontros com dirigentes da estatal para influenciar concorrências e contratos. Esse relacionamento culminou num “teatro”, nas palavras do diretor, para Lula posar entre tratores nas obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco.

Em pelo menos duas mensagens de 2007, recuperadas pela Polícia Federal, Rogério Araújo, então diretor da Odebrecht Plantas Industriais e que hoje é um dos presos da Lava-Jato, traça uma estratégia para a participação da empreiteira na licitação para as obras de terraplanagem da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, a partir de informações que teria obtido na estatal sobre o “orçamento interno” do projeto. O GLOBO cruzou o conteúdo dos e-mails com a cronologia da contratação do serviço: naquele momento, o “orçamento interno” era uma informação confidencial da Petrobras cuja obtenção permitiria às concorrentes fraudar a licitação.

A concorrência para as obras de terraplanagem do terreno onde foi instalada a refinaria foi aprovada pela diretoria da Petrobras no dia 3 de maio de 2007, de acordo com documentos internos da estatal obtidos pelo GLOBO. No dia 10 de maio, a companhia convidou dez participantes. Pouco mais de um mês depois, no dia 18 de junho, Araújo enviou um e-mail para outros dois executivos da empreiteira relatando saber que o orçamento interno da Petrobras ficaria entre R$ 150 milhões e R$ 180 milhões, cifra que ele diz “que obviamente não dá”. Segundo a reprodução das mensagens no relatório da PF, ele indica que queria mais do que o dobro. Ele avisa que falou com “interlocutores” e que “Engenharia” (uma provável referência à Diretoria de Serviços e Engenharia, de Renato Duque, também preso na Lava-Jato) já trabalhava na revisão do orçamento, como queria a Odebrecht. “A revisão do orçamento vai indicar um novo número, acima dos indicados acima”, antecipa. No texto, ele ainda registra que o valor só seria público na abertura das propostas, que aconteceria quatro dias depois.

No dia 22 de junho, a Petrobras recebeu seis propostas. A menor foi justamente a do consórcio liderado pela Odebrecht (com Camargo Corrêa, Galvão Engenharia e Queiroz Galvão, todas investigadas na Lava-Jato), de R$ 433,5 milhões. Segundo documento da diretoria da Petrobras, que aprovou a contratação do consórcio em 12 de julho de 2007, o valor ficou apenas 5,32% abaixo do que o diretor da Odebrecht chamava de “orçamento interno” da estatal. Araújo, ao que parece, logrou êxito. De fato, o valor estimado pela estatal, revelado quatro dias depois da troca de mensagens na Odebrecht, foi maior do que o dobro dos R$ 180 milhões que ele citou.

“TEATRO” PARA LULA

O fácil acesso a informações da Petrobras fica claro em um outro e-mail de Araújo, sobre uma cerimônia simbólica do início do contrato no terreno onde seria construída a refinaria, em Pernambuco, com a presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Araújo explica que a assinatura do contrato se daria no Rio, mas que seria preciso criar um cenário de obra em andamento para Lula, em meio a tratores e máquinas. “Vai haver uma solenidade no Recife, no dia 16 de agosto, para dar início aos serviços de terraplenagem, com a presença do presidente Lula. Neste dia, teremos que ter alguns equipamentos já mobilizados, para fazer parte do ‘teatro’!”

A cena montada pela Odebrecht ainda atrasou 19 dias. Só no dia 4 de setembro, o então presidente Lula discursou sob intensa chuva no palanque montado pela construtora ao lado do então presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli. Animado pelo gigantismo da refinaria, Lula comparou o empreendimento à construção da Muralha da China. “Temos uma verdadeira muralha da China para construir e vamos construir”, prometeu. A Refinaria Abreu e Lima só iniciou operação em 2014 e custou pelo menos sete vezes o valor orçado inicialmente pela estatal. Laudo da PF sobre o contrato de terraplanagem detectou um sobrepreço de R$ 106,1 milhões no contrato de compactação de aterro. Só o custo do metro cúbico compactado de solo pulou de R$ 2,70 para R$ 6,37 sem justificativa plausível.

O relatório da PF tem outras trocas de mensagens com indícios de que a influência da Odebrecht alcançava até negócios da Petrobras no exterior. Em um e-mail de 2008, Araújo cita a intervenção do então diretor Internacional da Petrobras Jorge Zelada (preso na semana passada) e de Ricardo Abi-Ramia, que foi gerente executivo de Desenvolvimento de Negócios da área Internacional para falar com Hércules Ferreira da Silva, ex-gerente da Petrobras Angola. No fim daquele ano, a empreiteira foi contratada para fazer o acesso à refinaria Sonaref, na cidade de Lobito, em Angola.

 

Odebrecht nega prática irregular em licitações

 

Procurada pelo GLOBO para comentar o teor das mensagens trocadas por Rogério Araújo, um de seus executivos preso na Operação Lava-Jato, a Odebrecht negou irregularidades no seu relacionamento com a Petrobras ou na participação em licitações da estatal. A empreiteira afirmou, em nota, lamentar que emails em poder da Polícia Federal desde novembro venham a público fora de contexto.

“A Odebrecht relaciona-se com a Petrobras há muitos anos, como fornecedora, cliente e sócia. Este relacionamento, como todos os demais da Odebrecht, ocorre rigorosamente dentro da lei, com ética e transparência. Todos os contratos de prestação de serviços conquistados com a Petrobras ocorreram de acordo com a legislação aplicável”, diz a nota.

A Petrobras informou que a Odebrecht está impedida de participar de novas contratações da companhia desde dezembro do ano passado por causa das denúncias investigadas pela Operação Lava-Jato que desencadearam apurações internas. Segundo a estatal, assim como as demais citadas na Operação Lava-Jato, os contratos da empresa são objeto de auditorias e comissões internas de apuração, paralelos ao andamento das investigações, cujos relatórios são compartilhados com o Ministério Público. Só no caso da Refinaria Abreu e Lima, atrasos no cronograma, aditivos e superfaturamentos levaram o orçamento da obra a saltar de US$ 2,4 bilhões para US$ 18 bilhões.

LICITAÇÃO POR CONVITE AJUDOU CARTEL

Depoimentos de delatores da Lava-Jato como o ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco e o dono da Setal Engenharia, Augusto Mendonça, apontaram que as licitações por convite ajudaram a atuação do cartel que fraudava as licitações da estatal. Pelo modelo, os técnicos da Petrobras estimam um orçamento para um projeto e convidam empresas do seu cadastro para participar da licitação. As concorrentes fazem proposta sem conhecer o orçamento ou as outras participantes. Na abertura dos envelopes, o orçamento estimado é revelado, e vence quem oferece o menor preço mais próximo desse valor. Em seguida, executivos da estatal ainda negociam um desconto maior para assinar o contrato. Esse modelo facilita a ação do cartel porque as empresas podem combinar propostas a partir de informações confidenciais de executivos da Petrobras corrompidos. Com dados como o orçamento estimado pela estatal e a lista dos outros concorrentes, as empreiteiras podem direcionar uma concorrência sem levantar suspeitas de órgãos de controle.