Celebração cautelosa

 

Em meio ao anúncio de que reabrirão embaixadas em julho, Cuba e EUA indicaram haver ainda muitas diferenças a superar. O esperado anúncio da reabertura das embaixadas de Estados Unidos e Cuba — avanço mais concreto da histórica reaproximação entre os dois países — foi cercado de ressalvas. Se, por um lado, o presidente americano, Barack Obama, ressaltou que está pressionando o Congresso para levantar restrições econômicas e de viagens à ilha, por outro, lembrou que os dois governos continuarão a ter diferenças profundas, que incluem a liberdade de expressão. Em Havana, o anúncio veio com ainda mais poréns: em nota, o governo de Raúl Castro lembrou que a reabertura é “o primeiro passo de um longo caminho”. E citou o fim do embargo econômico e a devolução do território ocupado pela base militar de Guantánamo como condições para se alcançar uma normalização total das relações.

YAMIL LAGE/AFPExpectativa. Em Havana, cubanos se reúnem em praça em frente à Seção de Interesses dos EUA para solicitar vistos: caminho para normalização de relações ainda é longo

Desde dezembro, quando os países anunciaram a retomada do diálogo, Obama adotou medidas executivas para afrouxar as sanções que pressionam a economia cubana. Em maio, os EUA deram outro passo importante, removendo Cuba da lista da lista de países que apoiam o terrorismo, e abrindo espaço para o governo cubano tomar financiamentos no exterior, expandir negócios e investimentos. No discurso de ontem, na Casa Branca, o presidente disse que está diante de um “passo histórico” e lembrou que as medidas não são apenas simbólicas, mas terão impacto na vida dos cubanos. E reiterou seu apelo ao Congresso americano para que ponha fim ao embargo a Cuba.

— Já passamos do momento em que devemos assumir que esta abordagem não funciona — disse o presidente, referindo-se ao bloqueio econômico. — Não funcionou em 50 anos. Deixou os Estados Unidos fora do futuro de Cuba e apenas torna pior a vida dos cubanos.

REAÇÕES INTERNAS

Minutos antes, em Havana, a televisão cubana informava que o presidente Raúl Castro enviara uma carta a Obama na qual confirmava a intenção de restabelecer as relações diplomáticas. Em seguida, apresentava na íntegra o discurso do presidente. Os assuntos pendentes de solução entre os dois países, porém, foram lembrados:

“Não poderá haver relações normais entre Cuba e EUA enquanto se mantenha o bloqueio econômico, comercial e financeiro que se aplica com todo rigor (...). Será indispensável também que se devolva o território ilegalmente ocupado pela Base Naval em Guantánamo”, disse a nota do governo, reconhecendo, no entanto, os esforços de Obama “de excluir Cuba da lista de Estados patrocinadores do terrorismo e de instar o Congresso a suspender o bloqueio”.

Nos próximos meses, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, deverá viajar a Havana para “orgulhosamente hastear a bandeira americana sobre nossa embaixada outra vez”, garantiu Obama. Já o governo cubano informou que seu chanceler, Bruno Rodríguez, presidirá a abertura da embaixada em Washington. A data marcada para o reinício do funcionamento das representações diplomáticas é o próximo dia 20.

O anúncio provocou reações imediatas entre os legisladores americanos que se opõem a qualquer mudança de política ou reaproximação com Cuba — tema que deve se tornar um ponto de divergência durante a campanha eleitoral. Aspirante presidencial pelo Partido Republicano e filho de imigrantes cubanos, o senador Marco Rubio disse em nota oficial que Washington deveria cessar as “concessões a este regime odioso”, e que bloquearia qualquer nomeação de um novo embaixador. O ex-governador da Flórida e também presidenciável Jeb Bush afirmou que a medida iria legitimar a repressão em Cuba.

— Eu me oponho à decisão de abraçar ainda mais o regime de Castro abrindo uma embaixada em Havana — disse.

Mas, apesar das vozes críticas e dos obstáculos políticos nos EUA, é “surpreendente o nível de apoio popular da política de Obama em relação a Cuba”, de acordo com Michael Shifter, presidente da Diálogo Interamericano, em Washington.

— A reação foi mais fraca do que a esperada. A velha política está desprestigiada e agoniza.

O caminho até a plena normalização, no entanto, não será fácil. Para o analista político cubano Andy Goméz, o tema dos direitos humanos continua sendo um dos pontos mais delicados nas negociações. Radicado na Flórida desde 1961 e professor emérito da Universidade de Miami, Goméz acredita que alguma concessão por parte do governo Castro deverá ser feita para que a normalização das relações avance.

— A linha-dura não mudou. Quando o Papa (Francisco) estiver em Cuba, em setembro, provavelmente irá exigir do governo algum posicionamento. Será preciso ceder um pouco para melhorar as medidas tomadas até agora no que diz respeito às liberdades de imprensa e de direitos humanos e na questão da libertação de presos políticos — afirmou ao GLOBO.

MUDANÇA EM ‘VELOCIDADE DO SÉCULO XX’

Mas, se em Miami, membros da comunidade cubana protestaram contra a retomada das relações, grande parte dos ativistas que vivem na ilha caribenha celebrou a decisão — com ressalvas.

— Era um tema pendente e esperado. Mas o anúncio, com um discurso nacionalista que fala de soberania e de não ingerência, mostra que o governo está colocando limitações a uma abertura maior. As coisas estão mudando muito lentamente, numa velocidade do século XX — disse ao GLOBO, por telefone, a dissidente Miriam Celaya. — De qualquer maneira, toda abertura num sistema totalitário, como o de Cuba, é positiva. É positivo haver essa fissura.

Com a mudança, espera-se que diplomatas americanos passem a ter mais liberdade de movimento em Havana, apesar de continuarem existindo algumas restrições. Desde 1977, EUA e Cuba têm operado missões diplomáticas, as chamadas “seções de interesses”, nas capitais de cada um sob a proteção legal da Suíça.

— O deslocamento de nossos diplomatas será muito mais livre e flexível — afirmou um funcionário do Departamento de Estado dos EUA.

 

‘Deixemos o pessimismo para
tempos piores’

Leonardo Padura ia de São Paulo para Paraty, em uma van, quando soube pela internet que Washington e Havana haviam finalmente anunciado uma data, 20 de julho, para a reabertura de suas respectivas embaixadas. Em entrevista por telefone da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde apresentará seu último livro “O homem que amava os cachorros” (editora Boitempo), ele fala da emoção que sentiu por finalmente ver o primeiro grande passo da reaproximação ser concretizado, das expectativas para cubanos e americanos, e das diferenças que ainda existem entre os dois países, que “falam alfabetos diferentes”.

Como o senhor vê o anúncio de hoje, feito com reservas?

Quando li, senti uma grande emoção, porque percebi que, por fim, chegou o momento em que se produz o primeiro grande acordo de um processo que havia começado em 17 de dezembro do ano passado, após vários encontros e seis meses depois. Há um elemento real e importante neste anúncio, mas também um elemento simbólico que é enorme, que será quando se levantarem as bandeiras, a de Cuba em Washington, e a americana em Havana. Estamos falando de 54 anos. Apesar das reservas que os dois governos ainda mantêm, não é um momento de pessimismo: deixemos o pessimismo para tempos piores e fiquemos com o otimismo. Que o fato de que Cuba e EUA estejam construindo esse acordo possa servir de exemplo de como países podem superar suas diferenças conversando, com diálogo, com respeito.

É possível manter relações diplomáticas com o embargo econômico ainda vigente?

É um processo que vai continuar porque realmente a lei de embargo dificulta muitas coisas, inclusive no funcionamento normal com outros países, que não os EUA. Por isso a declaração do governo cubano fala do restabelecimento das relações e não da normalização das relações. Quando o embargo desaparecer, veremos com mais clareza quais serão os benefícios para a sociedade cubana, e inclusive para os americanos, como a liberdade para viagens e comércio. Só assim os vínculos terão uma profundidade maior. Hoje, o principal problema é que não está nas mãos de Obama revogá-lo, mesmo que pareça possível que o presidente limite em alguns aspectos o peso e a densidade do embargo, como se estivesse abrindo janelas.

Obama falou de levar os valores americanos sobre direitos humanos aos cubanos. Como o senhor vê esta declaração?

É um velho tema de debates entre os sistemas políticos cubano e americano. Da sua perspectiva, os americanos consideram que em Cuba não se respeitam determinados direitos; e em Cuba, a leitura política diz que nos EUA, por sua vez, não se respeitam determinados direitos. É como se estivessem falando em alfabetos diferentes. E cada um tem sua razão desde sua perspectiva política. Em Cuba existem direitos humanos que são muito importantes e que foram preservados, como a saúde e a educação, e outros direitos civis que na leitura americana não são contemplados. A evolução das sociedades irá modificando ou ratificando essas posições.

Na prática, o que muda para os cubanos em geral?

Passaremos a ter encontros de caráter cultural, esportivo e religioso, que vão aproximar mais Cuba e os EUA, vínculos que em alguns casos são de caráter histórico, como a música e o beisebol, duas praticas sociais tão importantes nos dois países. Acredito que, à medida que forem se normalizando essas relações, o que terá início no dia 20 quando as duas bandeiras subirem, veremos mais consequências na vida cotidiana e prática dos cubanos. (M.G.)