A FALTA DE TRANSPARÊNCIA E A ‘ FILIAL DA CASA DA MÃE JOANA’

 

A falta de fiscalização e transparência beneficia sindicatos e abre portas para fraudes. O Ministério do Trabalho e a Caixa não informam quanto cada um dos 10.620 sindicatos do país arrecada. O total da contribuição sindical chegou a R$ 3,18 bi no ano passado, informam HENRIQUE GOMES BATISTA, RUBEN BERTA e TIAGO DANTAS. - RIO E SÃO PAULO- Em tempos onde transparência é a palavra da moda, o universo dos sindicatos não parece seguir a tendência da estação. Quem quiser saber hoje quanto a entidade que o representa recebe de Contribuição Sindical ( imposto decorrente de um dia de desconto do salário de todos os trabalhadores) terá muita dificuldade. Dos R$ 3,18 bilhões gerados no ano passado, por exemplo, a única informação repassada por órgãos oficiais é que R$ 173,2 milhões foram para as contas de cinco centrais. O Ministério do Trabalho e a Caixa simplesmente se recusam a informar quanto cada um dos 10.620 sindicatos registrados recebe.

MARCOS ALVESPrejuízo. Izac Almeida, que preside o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana, e Rogério dos Santos, um dos diretores: processos contra os familiares do ex- presidente e cobrança de mais de R$ 1,7 milhão

— A simples existência do Imposto Sindical já é uma aberração. Poucos países no mundo têm esse sistema, que representa um atraso. Isso já deveria ter sido extinto e seria bom para os sindicatos, que precisariam ser mais representativos e eficientes. Mas algo ainda pior é a Caixa se negar a informar esses dados, pois é um recursos retirado diretamente dos trabalhadores. Se existir uma justificativa legal, ela é totalmente imoral — comenta Gil Castello Branco, secretáriogeral da ONG Contas Abertas.

O ministério afirmou que, por causa da liberdade sindical, não fiscaliza o balanço das organizações. Em nota, a pasta informou que, como são entidades privadas, têm diversas fontes de financiamento, não apenas essa contribuição, e que a Constituição determina que elas não sejam fiscalizadas pelo Executivo.

A Caixa, responsável por arrecadar e distribuir a Contribuição Sindical, nega- se a passar as informações sobre quanto cada sindicato recebeu. O banco estatal informou em nota que esses valores “são protegidos pelo sigilo bancário, já que os dados não são públicos, tendo em vista que as entidades sindicais não são órgãos públicos. Dessa forma, entende- se que as informações solicitadas só poderão ser fornecidas pelas próprias entidades arrecadadoras do referido tributo”, informou o banco.

A falta de informação já chamou inclusive a atenção do Tribunal de Contas da União ( TCU), que faz fiscalizações esporádicas relacionadas a sindicatos. Em voto do ano passado, o órgão critica a pouca transparência, ressaltando que tratase de dinheiro público. “Conclui- se, de qualquer forma, ser a contribuição ( sindical) recurso de caráter público, porquanto oriundo da tributação, isto é, compulsoriamente exigida à sociedade. Vale acrescentar que o fato de os recursos serem recolhidos à Caixa Econômica Federal e, só depois, repassados aos sindicatos não lhes modifica a natureza”.

“AUTONOMIA NÃO É SALVO- CONDUTO”

O tema também chegou ao Supremo Tribunal Federal ( STF). Em voto de março do ano passado, na análise de um mandado de segurança impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Refeições Coletivas e a Bordo de Aeronaves de Brasília e Goiás questionando o poder de fiscalização do TCU, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou: “Precisa- se diferenciar o regime de autonomia administrativa dos sindicatos e a incidência de regras de controle sobre as atividades desempenhadas por entes públicos e privados. Afirmar simplesmente que a autonomia tem o condão de impedir o exercício de funções fiscalizatórias do Poder Público consubstancia argumento que, se for levado às últimas consequências, revela- se inaceitável”. O magistrado completa: “Autonomia sindical não é salvo- conduto, mas prerrogativa direcionada a certa finalidade: a plena e efetiva representação das classes empregadora e empregada”.

Outro órgão que já me manifestou pela obrigatoriedade de divulgação dos dados sobre os repasses da contribuição aos sindicatos foi a Controladoria Geral da União ( CGU). Este ano, a CGU interveio junto ao Ministério do Trabalho para tentar fazer cumprir um pedido feito por um cidadão, com base na Lei de Acesso à Informação. Até agora, porém, ainda não houve resposta satisfatória no envio dos números relativos ao período entre 2009 e 2013.

Se os dados dos repasses da contribuição sindical não chegam ao trabalhador, em casos de suspeita de desvio de verbas, os próprios sindicalistas penam para conseguir chegar no tamanho exato do prejuízo. Um exemplo disso é o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana ( STEFZS), em São Paulo. Durante 30 anos, a entidade foi dirigida pelo mesmo presidente, Rubens Craveiro, que morreu em julho de 2013. Os atuais dirigentes contataram um laudo pericial extrajudicial relativo a apenas um período de pouco mais de quatro anos, porque não tinham mais dinheiro para contratar um serviço mais amplo. Somente entre agosto de 2008 e dezembro de 2012, foram detectados mais de R$ 8 milhões em gastos sem comprovação.

Como Rubens já morreu, a atual direção entrou com dois processos contra os familiares do ex- presidente para tentar recuperar ao menos parte do dinheiro que teria sido desviado. Num deles, cobra R$ 723 mil, relativos a doações que teriam sido feitas ao Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Transporte de Passageiros da Zona Sorocabana ( Sinterf ), cujo presidente era Everson Craveiro, filho de Rubens. Na outra, o STEFZS cobra R$ 1,099 milhão, que teria sido desviado pelo ex- presidente, de contribuições confederativas que deveriam ir para uma federação nacional.

A segunda ação é embasada no depoimento de um funcionário que detalhou o método que teria sido usado por Rubens: os cheques para a federação teriam sido descontados na boca do caixa para pagar gastos pessoais do presidente. Mas, na hora de fazer o registro no livro de contabilidade do sindicato, era colocado um papel carbono onde constava o nome da entidade para onde deveriam ir os recursos.

A atual direção também entrou com uma representação criminal contra os herdeiros de Rubens em que cita “desmando como pagamento de funcionários que nunca trabalharam tal como sua irmã de santo, pai de santo, amigos íntimos, cargos desnecessários, veículos para uso da família, criando uma espécie de filial da casa da mãe Joana”.

— Temos muitos aposentados filiados, gente de cabeça branca, cheia de rugas. É muito difícil explicar para eles a realidade — diz o atual presidente, Izac de Almeida.

Everson Craveiro foi procurado através do telefone do Sinterf que consta na internet, assim como no telefone residencial, mas não foi encontrado. Seu irmão, Egeferson, que é advogado, foi procurado através do número que consta no site da OAB, mas também não foi localizado.

A falta de transparência e indícios de irregularidades não poupam nem mesmo os policiais federais. André Vaz de Mello afirma que encontrou o Sindicato dos Servidores do Departamento da Polícia Federal do Estado do Rio de Janeiro ( SSDPF/ RJ) em situação calamitosa:

— Não havia um livro de contabilidade em dia. Foi um sufoco. Há a denúncia de desvios de até R$ 1,2 milhão, em parte apurados em uma auditoria externa. A situação é tão complicada que acabamos trocando todos os funcionários da sede, só mantivemos uma senhora da limpeza.

Ele afirma que os problemas são enraizados na estrutura sindical. Os ex- presidentes do sindicato — que tem cerca de 1.700 filiados e orçamento anual de R$ 2,5 milhões —, negam participação nas irregularidades. O caso ainda segue sendo investigado.

MINISTÉRIO: NÃO CABE FISCALIZAÇÃO

O secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho, Messias Melo, afirmou que há pouco tempo a pasta começou a ter mais instrumentos para cobrar mais dados de entidades sindicais: em meados do ano passado foi aprovada uma norma que suspende o repasse de verbas a entidades que não informarem a situação de seus dirigentes. Ele lembra, contudo, que isso é apenas um registro, pois não cabe ao ministério fiscalizar a vida das entidades sindicais, pois a Constituição de 1988 definiu a Liberdade Sindical como um princípio:

— Já notificamos todos os sindicatos que não nos forneciam informações há mais de cinco anos e agora estamos concluindo esse processo com sindicatos sem informação há quatro anos — conta.

Carlos Henrique Jund, do escritório Jund Advogados Associados, que atua há mais de 20 anos com ações na área sindical e de associações, afirma que a falta de transparência levou a uma crise de representatividade dos sindicatos:

— Vemos cada vez mais sindicatos esvaziados, apenas negociando os acordos coletivos, por força de lei, e associações de diversas categorias, de fato, discutindo a realidade dos trabalhadores — diz ele, lembrando que as associações usam muito menos recursos que os sindicatos.