Cuba, bossa nova e Mário de Andrade em destaque

 

Cubano brilhou no último dia da festa, que conseguiu driblar a crise com eficiência. No último dia da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), destacaram-se três conhecidos do público brasileiro: o carisma do cubano Leonardo Padura, as declarações polêmicas do pesquisador musical José Tinhorão e as reflexões do filósofo José Miguel Wisnik. Na mesa “De frente para o crime”, que também contou com a escritora inglesa Sophie Hannah, Padura falou sobre literatura policial, mas também fez um panorama da evolução da liberdade de expressão em Cuba e a condição dos escritores do país. Segundo ele, a partir dos anos 1990, ficou mais fácil publicar no país, apesar da sombra da censura continuar muito presente.

— Há uma série de acontecimentos da vida cotidiana em Cuba que parece que nunca ocorreram — contou o autor. — Supera-se a situação, não se volta a falar disso, não se pede desculpas. O que faço na literatura é a memória do passado e do futuro no presente. A relação entre escritores e as instituições estão nesses dois casos.

O cubano, que narrou a saga de Leon Trotski em seu romance “O homem que amava os cachorros” (Boitempo), se disse impressionado com a quantidade de pessoas que o pararam nas ruas de Paraty dizendo que eram extrotskistas. Padura soube por amigos que o ex-presidente Lula, ao ler o livro, teria dito que estava virando trotskista por gostar tanto do personagem.

— Foi Stálin quem inventou o trotskismo para tirar seu adversário da luta pelo poder. A história de Trotski não pode ser escrita desligada de Stálin e do stalinismo. Esse romance é fundamentalmente anti-stalinista, mais do que um livro prótrotskismo, até porque falo das atitudes muito duras de Trotski nos seus momentos de poder e glória revolucionários — disse Padura.

O carisma de Padura deu lugar à acidez do pesquisador José Ramos Tinhorão e do compositor Hermínio Bello de Carvalho, que apresentaram opiniões divergentes sobre música popular. Na mesa “Música, doce música”, Tinhorão fez jus à sua fama de detrator da bossa nova.

— A bossa nova é ritmo de goteira — ironizou ele.

Sobrou até para Tom Jobim, “pessoa excelente”, mas com um equívoco: “Achava que compunha a música brasileira”, provocou o controverso pesquisador.

Na conferência de encerramento, o professor, músico e filósofo José Miguel Wisnik deu uma grande aula sobre Mário de Andrade. Analisou, ponto a ponto, a carta recém-revelada de Mário a Manuel Bandeira, na qual o modernista comenta sua “tão falada” homossexualidade, e lembrou também a condição de mulato do homenageado da Flip, para ele algo mais importante de ser discutido do que a sexualidade do escritor.

 

Festa teve mesas quase sempre lotadas

 

Em meio à crise financeira do país e à diminuição de seu orçamento nesta 13 ª edição, a Festa Literária Internacional de Paraty ( Flip) conseguiu manter o padrão: as mesas literárias transcorreram com normalidade e estiveram quase sempre lotadas; a curadoria conseguiu substituir bem o escritor Roberto Saviano, que cancelou sua participação de última hora; e algumas surpresas da programação animaram o público. A Flip, que começou quarta-feira passada e terminou ontem, trouxe 43 autores estrangeiros e brasileiros para sua programação principal e estima ter mantido o público de 25 mil pessoas, o mesmo de outros anos, participando de suas atividades oficiais.

DIFICULDADES COMPENSADAS

A festa começou sob desconfiança, pela redução de verbas de R$ 8,5 milhões em 2014 para R$ 7,4 milhões em 2015. Contudo, para Mauro Munhoz, diretorpresidente da Associação Casa Azul, que organiza o evento, as dificuldades foram compensadas pelo rearranjo espacial e pela escolha de Mário de Andrade como autor homenageado. Neste ano, a antiga Tenda do Telão foi substituída por um telão e quatro televisores anexos à Tenda dos Autores, concentrando uma parcela maior do público fora do Centro Histórico, do outro lado do Rio Perequê-Açu.

— Foi um ano bastante difícil, mas a escolha da homenagem foi mais do que oportuna, com um significado especial para Paraty — afirmou Munhoz, que não anunciou o homenageado de 2016. — A Flip conseguiu enfrentar este momento difícil porque é um laboratório. A crise impactou, mas não foi tão diferente fazer a Flip num ano de crise.

Curador da festa pelo segundo ano consecutivo, o jornalista Paulo Werneck destacou na manhã de ontem, antes das mesas de domingo, os debates sobre ciência (entre Sidarta Ribeiro e Eduardo Gianetti, e entre Artur Ávila e Edward Frenkel) e a conversa com o dramaturgo inglês David Hare como alguns dos pontos altos. Werneck, que não foi confirmado na curadoria do próximo ano — o anúncio do nome só será feito em outubro, segundo Munhoz — também comentou a participação feminina na programação, citando a argentina Beatriz Sarlo, as portuguesas Matilde Campilho e Alexandra Lucas Coelho e as brasileiras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.

— Conseguimos apresentar a um público mais amplo autores que não são tão conhecidos fora do meio especializado — disse Werneck.

PREOCUPAÇÃO COM SEGURANÇA

Como costuma ocorrer na Flip, o sucesso dos autores pôde ser medido pela venda na Livraria da Travessa, loja oficial do evento. Até sábado, os mais populares foram Matilde Campilho, Mário de Andrade, Sidarta Ribeiro, Edward Frenkel, além de Lilia e Heloísa, essas últimas com o livro “Brasil: uma biografia” ( Companhia das Letras).

A Flip também soube enfrentar o contratempo de ter perdido aquele que seria sua principal atração, o jornalista italiano Roberto Saviano. Autor de “Gomorra” ( Bertrand Brasil), ele avisou à organização uma semana antes do início da festa que não poderia vir por razões de segurança, já que vive sob proteção policial por seu trabalho sobre a máfia italiana. Para o lugar de Saviano, uma mesa sobre narcotráfico foi composta em poucos dias, reunindo os jornalistas Ioan Grillo (inglês) e Diego Osorno (mexicano), ambos especialista na cobertura dos cartéis de drogas mexicanos.

Outro ponto que chamou atenção nesta 13ª Flip foi o esquema de segurança sem precedentes montado para o evento pela Polícia Militar. Carros e agentes da PM circularam durante os cinco dias em um número três vezes maior do que o habitual. A iniciativa ocorreu devido ao aumento de violência em Paraty nos últimos tempos: em maio, o próprio prefeito, Carlos José Gama Miranda ( PT) foi baleado quando saía da Prefeitura, bem próximo ao local onde fica instalada a Tenda dos Autores.

No sábado, moradores de Paraty chegaram a fazer um protesto pedindo que o reforço na segurança não se limite ao período da Flip.

 

EM VÍDEO, ROBERTO SAVIANO LEMBRA TIM LOPES

Jornalista brasileiro é homenageado pelo italiano Roberto Saviano. O italiano Roberto Saviano, que cancelou a participação na Flip por motivo de segurança, fez uma homenagem a Tim Lopes, jornalista da TV Globo assassinado por traficantes em 2002. Ontem, na mesa “Livro de cabeceira”, a organização do evento divulgou um novo trecho do vídeo enviado pelo autor ameaçado pela máfia napolitana Camorra. Nele, o repórter brasileiro é citado junto com o fotojornalista argelino Christian Poveda, morto por bandidos de El Salvador. Saviano ressaltou a importância dos profissionais que perderam a vida por escrever sobre organizações criminosas. Ele também disse que deseja participar da Flip no ano que vem ou em 2017 e fez um apelo:

— Encontrem uma maneira de me levar ao Brasil para um evento público. Permaneço sonhando com o céu brasileiro.

O autor fez relações entre a máfia italiana e o crime organizado brasileiro. Para o autor de “Gomorra” (Bertrand Brasil) e “Zero zero zero” (Companhia das letras), a ideia de que o crime é resultado da miséria está errada.

— O livro que escrevi tem o coração na América Latina. O Brasil tem papel importante no comércio mundial de cocaína — disse. — O crime organizado não pode existir sem aliança com a burguesia. Esse elo precisa ser descrito. Os traficantes das favelas injetam dinheiro na economia brasileira.

 

Debates seguem no Rio

 

AFlip acabou ontem em Paraty, mas os debates sobre literatura continuam no Rio. Os Encontros O GLOBO Especial Pós- Flip trazem mais uma chance para ver (ou rever) autores que foram destaques da festa. As atividades se iniciam hoje com um encontro com o escritor australiano Richard Flanagan, às 20h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon. O vencedor do Man Booker Prize em 2014, pelo romance “O caminho estreito para os Confins do Norte”, vai conversar com o jornalista Guilherme Freitas.

Amanhã, às 17h, na Casa do Saber (Av. Epitácio Pessoa 1.169), é a vez de um debate sobre Mário de Andrade, o autor homenageado da Flip, abordando a missão folclórica idealizada em 1938 pelo autor modernista, e refeita em parte, recentemente, pelo fotógrafo Custodio Coimbra e por Guilherme Freitas. A reportagem especial, que documenta diversas ações culturais no Nordeste, acaba de ser lançada no e- book “Missão Mário de Andrade”, disponível nas lojas virtuais Apple iBooks Store, Google Play Livros, Amazon, Kobo e Livraria Cultura por R$ 15. Para assinantes, o download é gratuito.

O debate, que contará com projeções de vídeos feitos pelos jornalistas com personagens da região, terá a participação de Coimbra, de Freitas, e do escritor Eduardo Jardim, autor da primeira biografia de Mário de Andrade, “Eu sou trezentos” (Editora Casa da Palavra). O evento também marca a abertura de uma exposição com fotos da viagem.

Na quarta-feira, encerrando o projeto, dois poetas — o carioca Carlito Azevedo e a portuguesa Matilde Campilho — farão um bate-papo com a jornalista do GLOBO Mariana Filgueiras às 19h30m, novamente na Travessa do Leblon. Carlito é curador da página Risco, publicada mensalmente no Prosa, e autor de obras como “Monodrama” (2009). Já Matilde, cuja participação na Flip foi considerada um dos pontos altos da festa — numa mesa mediada por Carlito —, apresenta a sua primeira coletânea de poemas, “Jóquei” (Editora 34), que traz textos em verso e prosa.