Título: Transição em marcha
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 02/09/2011, Mundo, p. 14

Reunidos em Paris, representantes de 63 países aprovam a liberação de US$ 15 bilhões para os rebeldes que organizam o governo da era pós-Kadafi

Enquanto Muamar Kadafi se mantinha irredutível no desafio aos rebeldes líbios e à coalizão internacional que se opõe ao seu regime, os líderes do novo governo que começa a instalar-se em Trípoli conquistaram ontem o direito de movimentar US$ 15 bilhões em fundos pertencentes ao país que estavam congelados.

A liberação de ativos foi o principal resultado da conferência dos Amigos da Líbia, realizada ontem, em Paris, com representantes de 63 governos e organizações internacionais, além dos dois principais líderes do Conselho Nacional de Transição (CNT, coalizão rebelde), Mustafah Abdel Jalil e Mahmud Jibril.

O presidente francês, Nicolas Sarkozy, dividiu a coordenação do encontro com o premiê britânico, David Cameron, que anunciou a continuação dos ataques da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra as forças pró-Kadafi, "pelo tempo que for necessário para proteger os civis". As potências emergentes que formam o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) expressaram suas reservas à transição enviando delegações de menor porte ¿ os sul-africanos nem participaram ¿, mas Moscou surpreendeu reconhecendo a autoridade do CNT. O Brasil manteve a posição de aguardar um pronunciamento formal das Nações Unidas.

"Decidimos por um pedido unânime para que sejam desbloqueados os bens, pois o dinheiro desviado por Kadafi e seus funcionários deve voltar aos líbios", declarou Sarkozy no fim do encontro.

Segundo estimativas internacionais, cerca de US$ 160 bilhões pertencentes ao Estado líbio estão congelados em bancos de vários países, desde fevereiro, em cumprimento a resoluções da ONU. A quantia deverá ser usada na reconstrução da Líbia, segundo o anfitrião, mas ele ponderou que o país deve também iniciar um "processo de reconciliação e perdão", para que erros do passado não sejam repetidos. O mesmo pedido foi feito pela secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, que também instou a população a não buscar vingança.

Nota do Itamaraty Entusiastas da rebelião e pioneiras no reconhecimento do CNT, as potências europeias estavam representadas por seus chefes de Estado ou governo, enquanto os Estados Unidos enviaram a titular de política externa. Enquanto isso, os Brics se fizeram representar por emissários especiais. Rússia, China e Brasil foram convidados por Sarkozy, ao convocar o encontro. A África do Sul, que não foi mencionada, tinha sido a única entre os Brics, no Conselho de Segurança da ONU, a votar a favor da autorização para o uso da força contra Kadafi. A posição foi revista, no entanto, depois que as incursões militares passaram a promover bombardeios em território líbio, e o presidente Jacob Zuma voltou ontem a criticar o Ocidente: "Tinham mandato para proteger os civis, mas em vez disso os bombardearam".

O Brasil foi representado por seu embaixador no Egito, Cesário Melantonio Neto, responsável também por manter conversações com os rebeldes. Melantonio não fez declarações após a conferência, mas o Itamaraty divulgou nota sobre a posição brasileira na reunião, na qual enfatiza que "o Conselho de Segurança é a instância primordial para o tratamento de questões de paz e segurança". O governo brasileiro tem sido contrário a que decisões sobre a Líbia sejam tomadas em conferências à margem da ONU. "O Brasil entende que mesmo a forma de implementação de resoluções do Conselho de Segurança deverá sempre ser objeto de deliberação por parte do próprio conselho", afirma a nota. O texto reitera a posição de que caberá ao Comitê de Credenciais das Nações Unidas determinar quem se pronunciará pela Líbia na Assembleia Geral, no fim de setembro. Pelo menos até lá, o Brasil não deve reconhecer o CNT.

Na conferência, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, propôs o envio de uma missão à Líbia. Ban também declarou que em 20 de setembro será realizada uma "reunião de alto nível" sobre o país, paralelamente à Assembleia Geral, que será aberta no próximo dia 13, em Nova York.

Protesto contra minas do Brasil A Procuradoria-Geral da República (PGR) recebeu ontem denúncia de que o Brasil teria mantido a venda de minas antipessoais para o regime do ex-ditador da Líbia, Muamar Kadafi. Abdalla Al-Hamdy, cidadão líbio residente no país, protocolou o documento e pediu ao órgão que inicie uma investigação. "Solicitamos e apelamos à PGR que investigue a eventual operação terrorista, para apurar as responsabilidades e denunciar os culpados", registrou Al-Hamdy no texto da representação. Ele foi um dos 30 líbios que, há três semanas, ocuparam a embaixada do país africano em Brasília para protestar contra o antigo regime. Entre as provas apresentadas para fundamentar a denúncia, foi mencionado que a Human Rigths Watch ¿ organização internacional que segue pelo mundo pistas de abusos ou ameaças aos direitos humanos ¿ teria avalizado a suspeita. Especialistas consultados pelo grupo, aparentemente, respaldaram os indícios de que as minas teriam origem brasileira. Oficialmente, esses artefatos pararam de ser fabricados pelo país em 1987, em obediência à Convenção de Ottawa, que tratou de pôr fim à sua produção pelo mundo. Segundo o Ministério da Defesa, a última remessa de minas brasileiras aos líbios foi feita em 1988.