Um futebol mais forte após a crise

 

Éna crise que um país se revela. Sempre que uma crise se instalou, o futebol brasileiro se renovou e saiu mais forte. Houve evoluções táticas em campo e, fora dele, a bola cumpriu importante papel social, como na superação do “complexo de vira- latas” ou na redemocratização do país. Crise gera oportunidade, e a História mostra que o momento é favorável para nos desenvolvermos. Mídia e sociedade cobram ações imediatas da CBF. Mas, não será que aquilo que falta em campo — o jogo coletivo — não faltaria também em um nível institucional e social para a reconstrução coletiva do nosso futebol?

ANDRÉ MELLO

O debate democrático e a aprovação da MP do Futebol são exemplos. No entanto, estão longes de serem a “salvação”. A crise atual não decorre exclusivamente da gestão no esporte, mas de um complexo contexto que envolve aspectos sociais, culturais, históricos, econômicos. Transpassa os primeiros toques de uma criança na bola até a exportação precoce de atletas. Do popular ao profissional. Apenas um olhar para esta totalidade conjuntural e o debate coletivo poderão renovar o futebol brasileiro. E, se assim for, ele também cumprirá seu transformador papel social. O I Congresso Brasileiro de Futebol proposto pela CBF seguirá esta linha.

Ampliando o debate, vamos supor que o refinanciamento da dívida e as contrapartidas ocorram da melhor forma possível.

Teríamos aí a certeza de uma renovação? Para o historiador Eduardo Galeano, o nosso futebol é “aberto à fantasia, prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer”. Subvertendo a lógica, o tempo e o espaço do jogo, o Brasil apresentou ao mundo seus maiores jogadores. Uma subversão que vem do prazer, do drible. O país poderá ter ótimas gestões, mas, ainda assim, perder a essência de sua escola. Pois o drible é criatividade, é liberdade que foge ao controle de quem tenta segurá- lo.

As raízes deste futebol se fundaram no modo brasileiro de viver, alegre e criativo, e se sincronizaram com fenômenos culturais e artísticos. Há quem diga que condições sociais favoreciam o surgimento de jogadores como a ( já antiga) ideia de que brasileiros sabiam driblar por ter que fazê- lo com a pobreza da vida. Fato é que o futebol cresceu na cultura popular, construiu a identidade do país e garotos brincavam livremente de futebol. E, por viver este lado lúdico com tanta intensidade, alguns garotos cresceram e “brincaram” nos estádios. A ludicidade do jogo na vida daquele que o vive com prazer potencializa a criatividade. E da criatividade ao drible, à arte são poucos passos: “... E quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?” pergunta o historiador Eric Hobsbawm.

Mas algo mudou. São outros tempos, de outro futebol, de outro Brasil. No mundo contemporâneo, cultura e arte se tornam efêmeros objetos de consumo. Forças contraditórias tomam o esporte que se globalizou. Move a paixão de multidões nas arenas e bilhões de dólares no mercado. Hobsbawm, neste cenário, afirma “o futebol carrega o conflito essencial da globalização”, em um delicado equilíbrio de forças. O futebol precisa ser cultivado para não se perder entre forças alheias a sua essência. E nos tempos atuais, como anda a cultura popular do futebol? O que se vê quando se olha para ela?

Cresce o índice de crianças sedentárias. A educação física é sucateada nas escolas. Preconceitos e intolerância ao diferente. A violência se espalha em todos os setores da sociedade. Campos de terra, que antes eram de diversão, são tomados por medo e insegurança, sufocando as raízes do nosso futebol.

Uma das respostas para reverter esta situação é o próprio futebol. Quanto mais futebol, mais educação, menos violência. Renovar o futebol passa por um resgate da cultura do prazer e da alegria, da criatividade e do lúdico no esporte. A CBF fomentará a construção coletiva que levará o futebol brasileiro a uma ainda desconhecida fase, da qual sairá fortalecido dentro e fora de campo. Novos tempos. Que 2014 venha cumprir a sua função social, pois, mais que o futebol, o país precisa de mudanças.