Nove anos com mais informação!

Rafael Campos 

27/07/2015


Especialistas e vítimas confirmam que houve evolução na definição da violência doméstica depois que a regra foi instituída, com a ampliação do conceito e a conscientização do agressor. Segundo a Secretaria de Segurança, números de ataques estagnaram em um ano.

“Ele ainda controla a minha vida. Estou privada do convívio com minha família, tive que parar de trabalhar, não posso encontrar meus amigos. Não tenho nada a reclamar daqui e das pessoas que cuidam de mim. Mas é como se eu estivesse presa.” A sensação de Helena* é compartilhada pelas companheiras na Casa Abrigo, unidade de acolhimento de mulheres vítimas de violência. Porém, depois de nove anos da aprovação da Lei Maria da Penha, em 7 de agosto de 2006, a consciência e a informação delas aumentaram, mesmo que os traumas deixados por um relacionamento violento não diminuam.

Helena faz parte de uma geração que, com ajuda da legislação, entende a amplitude da violência doméstica, muito além das agressões físicas. “Eu acho que sou uma das únicas aqui que não apanhou. Mas passei cinco anos da minha vida com medo, sofrendo humilhações e ameaças, até me separar. Depois disso, comecei a ser perseguida e havia uma certeza: meu ex-marido me mataria se eu não fugisse.” Para grande parte dos especialistas, essa é uma das grandes evoluções trazidas pela Lei Maria da Penha. “Antes dela, havia a ideia de que a violência era somente aquela com lesões físicas que deixavam marcas. A lei trouxe a informação para as mulheres de que existem outros tipos”, garante Ana Cristina Santiago, chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam).

Além de mais conhecimento, em nove anos, foi possível observar questões particulares que envolvem o crime. No livro Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica, a professora da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) Marilia Montenegro defende a tese de que o encarceramento do agressor faz com que grande parte das vítimas temam em denunciar, já que, na maioria dos casos, os dois mantêm uma relação afetiva. “Em grande parte das situações que chegam aos Juizados da Mulher, seria muito mais importante uma mediação do que uma pena. O sistema penal não é capaz de compreender as relações de afeto que existem nesses casos”, afirma. A tese da professora é reforçada por aqueles que trabalham diretamente com a lei.

Ciclo

Naiara Oliveira, chefe do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), da 102 Sul, explica que o rompimento de um ciclo de violência é lento e com a necessidade de ter um olhar que vá além da diferenciação entre algoz e vítima. “Até mesmo em um caso de reincidência, não podemos afirmar que o trabalho feito com o agressor não surtiu efeito. É necessário entender que todos estamos imersos em uma cultura machista e que a prisão é uma possibilidade dentro de um processo”, garante. Por isso, na opinião dela, os números de ocorrências são apenas um dos detalhes a serem avaliados.

No primeiro semestre de 2015, foram registradas 6.944 ocorrências do crime, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Paz Social do Distrito Federal. No mesmo período de 2014, foram quase 7 mil casos, demonstrando uma estagnação. “Esses números precisam ser olhados de forma qualitativa. Caso as denúncias dos outros tipos de violência que não a física aumentem, isso pode significar um resultado positivo para a consciência da mulher em relação à integridade”, garante. Mesmo nas regiões administrativas onde ocorrem a maioria dos casos se observa um equilíbrio. No comparativo de registros ocorridos em Ceilândia, cidade com mais ocorrências entre os anos de 2012 e 2014, houve uma variação de -3%. Em todo o Distrito Federal, essa alteração no triênio foi de -4% (veja Onde ocorrem os crimes).

Dívida

Para Ana Cristina Santiago, é preciso lembrar os obstáculos que estão além da relação com o agressor. “Costumamos dizer que essa violência é diferente. Para chegar ao balcão de uma delegacia, a mulher precisa vencer preconceitos familiares, morais, sociais e religiosos. A sociedade tem um débito cultural com elas, e a lei é uma ação afirmativa para diminuir as diferenças”, atesta. Dívida que David* só entendeu depois de passar por um dos Núcleos de Atendimento à Família e Autores de Violência Doméstica (Nafavd). Lá, percebeu que a discussão com a mulher não foi algo apenas “briga de casal”. Um acordo judicial permitiu que ele não fosse preso, mas obrigado a participar das reuniões que ocorrem nos núcleos. Eles oferecem acompanhamento psicossocial e dão orientações jurídicas às famílias em situação de violência doméstica, em especial aos homens agressores.

Em encontros, eles podem conversar sobre suas experiências, além de serem esclarecidos sobre questões de gênero, em uma tentativa de mudar a mentalidade misógina que acompanha a maioria dos homens que comete o crime. “Eu pude aprender muito. Foi um passo importante para que eu entendesse o que fiz. Quando a gente fala sobre o que passou, aprende muito. Hoje, eu sei que nunca mais entrarei em conflito assim de novo”, garante.

A informação é uma arma para garantir que todas as vertentes dessa situação possam sair desse ciclo. A coordenadora do Projeto Maria da Penha, da Universidade de Brasília (UnB), Ela Wiecko de Castilho, diz que se sente emocionada ao perceber o grau de conscientização das mulheres que acompanha. Ela, que trabalha há oito anos com o tema, faz encontros entre vítimas de violência doméstica e garante que elas sabem mais quando estão sendo coagidas. “Com o tempo em que a lei está em vigor, elas próprias conversaram mais entre si e reconheceram os comportamentos praticados pelos companheiros. Não é por meio do encarceramento que vamos mudar a realidade. Ele é necessário em vários casos, mas não pode ser a única alternativa”, completa.

*Nomes fictícios

Nove anos com mais informaçãoDuas perguntas para Marise Nogueira,secretária de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do DF.

Os dados mostram um equilíbrio no número de ocorrências no primeiro semestre de 2014 e 2015. Isso reflete uma possibilidade de que, em anos seguintes, os casos diminuam?

Gostaria de responder que sim, porque o ideal das gestoras de políticas para mulheres é erradicar a violência de gênero. Porém, não vejo possibilidade de tirar essa conclusão dos números disponíveis. O total de registros de ocorrência de violência doméstica, no âmbito da Lei Maria da Penha, tem se mantido praticamente estável nos últimos anos, em um patamar de cerca de 14 mil casos por ano. Vale ressaltar que o aumento das denúncias não significa obrigatoriamente aumento dos casos. Pode representar, ao contrário, aumento da informação sobre os canais de denúncia, da disposição de denunciar e até mesmo da conscientização acerca da violência como violação de direitos.

A violência contra a mulher pode ser considerada um problema grave no DF? Por quê?

Sim. No DF e no mundo inteiro. A violência contra as mulheres é fruto do machismo e da naturalização da violência nas relações sociais. Em que pese serem as mulheres as principais vítimas, toda a sociedade sofre com a violência de gênero. Viver em situação de violência reduz a produtividade e aumenta o absenteísmo no trabalho, gera doenças, deixa sequelas e traumas psicológicos, reduz a auto-estima e a sensação de felicidade. As pessoas que convivem em ambientes violentos são mais propensas a reproduzir a violência. E a violência mata. A taxa de feminicídios no DF entre 2009 e 2011 foi de 5,82 por 100 mil mulheres, a maioria delas vítima de seus cônjuges ou ex-parceiros. Isso é grave. Por isso, o compromisso da sociedade e do governo tem que ser de envidar todos os esforços para atender às mulheres em situação de violência, ao mesmo tempo em que constrói uma cultura de respeito, igualdade de gênero e não violência.