Comissão detalha primeira prisão da ditadura

 

 Na manhã de 30 de março de 1964, o presidente do Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora (MG), José Villani Côrtes, hoje com 86 anos, cumpria sua rotina de chegar às 7h30m à sede da Cooperativa de Consumo da categoria quando foi interpelado por militares e policiais, que o levaram à delegacia da cidade mineira. Ao chegar no local, Villani foi fichado e deixado na carceragem, tornando-se o primeiro preso político do golpe de 64, um dia antes de o movimento militar que levou o país a uma ditadura de 21 anos ser deflagado.

Villani é um dos 151 militantes políticos de Juiz de Fora que passaram por algum tipo de tortura ou violação de direitos humanos durante a ditadura e que tiveram suas histórias resgatadas pela Comissão Municipal da Verdade do município (CMV-JF). A comissão analisou documentos da Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, que julgava presos políticos de Minas Gerais, Rio, Goiás e da antiga Guanabara.

Constam no relatório do grupo, disponibilizado na internet, informações de mineiros de outras regiões que lutaram contra o regime, como a presidente Dilma Rousseff e o governador de Minas, Fernando Pimentel. Além de identificar que as prisões de militantes começaram bem antes do golpe, a comissão derrubou a versão de que foram raros os casos de tortura em unidades da cidade, se comparados com o total de relatos registrado no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte.

— A revolução não foi no dia 31 (de março de 1964), a revolução começou antes, no dia 30, quando fui preso e levado para a delegacia que ficava na Rua Alberto de Oliveira e hoje nem existe mais. Fui o primeiro a estrear a cadeia da ditadura — conta Villani, que permanece à frente da Associação dos Funcionários Aposentados do Banco do Brasil (Afabb). — Fiquei preso 11 meses após o golpe. Passei por várias unidades militares em Juiz de Fora e Belo Horizonte. Ao longo da ditadura, fui preso outras vezes — lembra o sindicalista, que relatou à comissão torturas físicas e psicológicas pela qual passou.

BANCÁRIO MOBILIZAVA TRABALHADORES

A prisão de Villani, segundo pesquisadores da CMV-JF, foi estratégica. Para os militares, o bancário oferecia perigo ao ocupar a posição de líder sindical influente na Zona da Mata mineira. Era ele quem mobilizava trabalhadores para comícios em apoio ao governo do então presidente João Goulart, deposto pelo golpe, liderava greves e defendia ideais socialistas. Ao levarem Villani à carceragem, os militares iniciaram uma operação para sufocar focos de resistência. Enquanto o sindicalista era preso, tropas contrárias ao governo se preparavam para ocupar postos de gasolina — que passariam a abastecer apenas carros militares —, veículos de comunicação e agências dos Correios, e evitar tentativas de mobilização de grupos de esquerda.

— Na época não entendi muito bem a minha prisão. Não sabia que oferecia tanto risco à direita. A gente sabia que ia acontecer algo, só não sabia quem iria agir primeiro: a direita integralista ou a esquerda. O clima na cidade era ruim, de desconfiança — conta Villani, que prefere não falar muito do passado: — Depois de três AVCs (acidente vascular cerebral), a gente deixa de lembrar muita coisa. Mas o relatório da comissão me fez voltar ao passado. Me fez muito mal esse trabalho. Está muito bem feito, mas essas memórias nem sempre me fazem bem.

Do período em que esteve preso, Villani pontua torturas sofridas em unidades militares de de Belo Horizonte. Na capital mineira, lembra o sindicalista, as agressões — chamadas por ele de bordoadas — eram físicas. Já em Juiz de Fora, o pior era o medo imposto pelos torturadores:

— Não sabíamos o que iria acontecer. Escutávamos tiros e gritos, não sabíamos se eram militares encenando ou se alguém estava realmente sendo morto. Ficávamos sem dormir, não deixavam. Toda hora aparecia alguém que ficava olhando para gente sem falar nada. Teve vezes de ficarmos vários dias com luz em nossos olhos para perdermos a noção do tempo — lembra ele, que permaneceu um mês sem banho: — Tortura não é só pancada. Cheguei a ficar um mês sem banho. E só pude tomar banho e fazer a barba depois porque receberia a visita de minha mãe. Fui “orientado” a dizer que estava tudo bem. De barba feita e banho tomado até parecia que estávamos sendo bem tratados (risos).

Em meio às torturas psicológicas, o sindicalista era obrigado a ficar em cela molhada permanentemente, sem poder deitar no chão para dormir. Segundo Villani, as ameaças eram constantes. Durante governos militares, no período que esteve em liberdade, o bancário e sua família foram intimidados. Villani foi transferido de agências do Banco do Brasil por várias vezes, para que não pudesse formar grupos de mobilização de esquerda. Passou por cidades de Minas, Rio, Goiás e Ceará.

 

Constrangimento, surras e tortura são relatados por ex-presos políticos

A história de José Villani Côrtes faz parte do relatório Memórias da Repressão, lançado em e-book (http://pjf.mg.gov.br/comissaod…/documentos/ebook_cmv2015.pdf) pela CMV-JF e disponibilizado gratuitamente. Por meio de pesquisa documental e relatos de ex-presos políticos — foram 37 depoimentos, além de uma coletânea de audiências de outras comissões —, pesquisadores identificaram casos de treinamentos de militares para tortura. Eles atuavam em Minas e eram levados ao Rio para aprenderem as técnicas. Em um dos cursos, uma militante chegou a servir de cobaia para tortura em frente ao filho menor.

Os relatos confirmaram sessões de espancamentos em unidades militares da cidade mineira, quase sempre feitos por agentes da repressão que atuavam em Belo Horizonte. Ao trazerem presos políticos para deporem na Justiça Militar de JF, eles colocavam em prática a tortura. Há registros de constrangimentos, como presos mantidos sem roupa. A Penitenciária de Linhares, transformada em presídio para presos políticos, chegou a proibir o uso da palavra companheiro nas conversas, sob alegação de ser um vocabulário que identificava “subversivos”.

 

Documentos históricos enfrentam falta de conservação

Presidente da Comissão da Verdade de Juiz de Fora, a professora da UFJF Helena da Motta Salles faz um alerta sobre a conservação dos documentos do período da ditadura encontrados pelos pesquisadores. Segundo Helena, o relatório da comissão aponta como um dos acervos que enfrenta a falta de infraestrutura e conservação — que vão de local inadequado à carência de pessoal —, o Arquivo Histórico. De responsabilidade da prefeitura, o órgão promoveu a digitalização dos livros disponibilizados pela Auditoria Militar. Hoje, o material permanece guardado em uma das salas do Arquivo.

— Mesmo sem condições adequadas, o Arquivo Histórico conseguiu digitalizar todos os livros. É preciso rever a conservação e as condições do prédio — sugere.

Também consta no relatório da comissão o acervo da Polícia Federal no município. O material está guardado em sala imprópria, e os arquivos não são organizados. Pesquisadores da CMVJF temem que os documentos se percam com o tempo. A comissão sugere ainda a criação de um memorial da ditadura. Entre os prédios que poderiam abrigar o acervo está a antiga sede da Auditoria Militar, no Centro.

 

Digitalizada, ata com sentença de Dilma poderá ser acessada em site

Ao longo de um ano, a Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora analisou documentos disponibilizados pela Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar. Entre o material disponibilizado pelo Tribunal Militar, estão 250 volumes de atas com registros de todos os julgamentos militares promovidos no município mineiro ao longo da ditadura. No livro de 1972, há a condenação da presidente Dilma Rousseff, por crimes contra a segurança nacional, e a absolvição do governador de Minas, Fernando Pimentel, sob a alegação de menoridade no período relatado no processo.

DIVULGAÇÃO/COMISSÃO DA VERDADE-JF/ARQUIVO HISTÓRICOAuditoria. Depoimentos de Dilma e Pimentel (de óculos), ambos na 2 ª fileira

“O Conselho, após longo estudo e integral consulta nos autos, decidiu: (...) Condenar, como incursos no artigo 36 do Decreto Lei citado (que diz respeito aos crimes contra a segurança nacional), por maioria de 3x2 votos: (...) Dilma Vana Rousseff Linhares à pena de 1 ano de detenção”, diz a ata, de 19 de abril de 1972. Dilma foi condenada por sua atuação no Comando de Libertação Nacional (Colina). Ela era apontada pelos militares como integrante do núcleo intelectual do grupo.

Dilma esteve presa no QG do Exército em Juiz de Fora no início dos anos 1970. Até ser condenada, chegou a prestar depoimento na Auditoria. No mesmo processo em que Dilma e Pimentel são réus, também estão o ex-marido da presidente Cláudio Galeno de Magalhães Linhares e outros 25 militantes políticos. Onze deixaram de ser julgados por, segundo a ata, terem “sido banidos do Brasil”. Dez foram julgados à revelia. Parte dos companheiros de Dilma foram condenados por assaltos a três bancos, que financiaram ações do grupo, e atentado.

Os 250 livros, aos quais o GLOBO teve acesso, foram digitalizados pelo Arquivo Histórico de Juiz de Fora e estarão disponíveis, até o fim deste ano, para pesquisas no site da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Os volumes, de acordo com a pesquisadora do arquivo Elione Silva Guimarães, permaneceram guardados pela Auditoria desde o fim da ditadura, e o conteúdo mantém-se inédito.