Governo vê contradição no TCU

No documento entregue ontem ao TCU para se defender no caso das “pedaladas fiscais”, o Planalto afirma que a Corte violará a “segurança jurídica” e agirá por “vontades particulares”, caso rejeite as contas de 2014 da presidente Dilma. - BRASÍLIA- Além de negar ter cometido qualquer manobra irregular para fechar as contas de 2014, a defesa da presidente Dilma Rousseff para as “pedaladas fiscais”, protocolada ontem no Tribunal de Contas da União ( TCU), aponta possíveis contradições do tribunal e faz um alerta direto à corte que ameaça rejeitar a contabilidade do governo.

AILTON DE FREITASPapelada. Luís Inácio Adams ( de barba), advogado geral da União, entrega a defesa do governo ao presidente do TCU, Aroldo Cedraz ( de óculos), e ao relator, Augusto Nardes

O texto afirma que o TCU cometerá uma ilegalidade, agirá por meio de “vontades particulares”, e violará o “princípio da segurança jurídica” caso mantenha o entendimento de que as contas de 2014 do governo contêm irregularidades. O cerne do documento, assinado pelo advogadogeral da União, Luís Inácio Adams, é reiterar que o TCU anteriormente já considerou válidas práticas que agora reprova.

Por isso, para o governo, um entendimento pela rejeição das contas representaria uma contradição do órgão julgador, e desrespeitaria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ( STF), reproduzida na defesa. Dilma participou da elaboração do documento e revisou o material entregue ontem por Adams ao presidente do TCU, ministro Aroldo Cedraz, e ao relator, ministro Augusto Nardes.

“Na administração pública, inclusive nas atividades de controle e fiscalização, a sujeição ao princípio da legalidade constitui verdadeira bússola de atuação, pois não há espaço para liberdades ou mesmo vontades particulares, mesmo que passageiras, sob pena de se contaminar de forma insanável a atuação estatal que determinado órgão tenha por atribuição produzir”, diz o texto, numa referência ao próprio TCU.

Adams entregou a defesa de 113 páginas e os anexos que somam 900 páginas no último dia do prazo de 30 dias dado para a presidente se explicar sobre os 13 indícios de irregularidades apontados pelo TCU. Agora, Nardes vai encaminhar a defesa à área técnica do tribunal e pedir urgência na análise. A previsão é de que o julgamento do parecer de Nardes pelo plenário do TCU ocorra na segunda quinzena de agosto. A avaliação definitiva das contas presidenciais é do Congresso.

O advogado da União Rafaelo Abritta, que atua junto ao TCU, também assina o documento principal da defesa. Em diversos trechos, o governo adverte para a possibilidade de violação do princípio da segurança jurídica, caso o tribunal confirme o entendimento de que práticas como as “pedaladas” são irregulares.

O argumento da Advocacia- Geral da União ( AGU) é que eventuais mudanças de interpretação do tribunal devem valer para o futuro, e não como punição para contas anteriores. “A legalidade é instrumento essencial para a boa interpretação de condutas, sendo vedada a distorção ou mesmo a construção de interpretações novas que busquem em dado momento conferir aparência de ilegal àquelas condutas que sempre foram recepcionadas pela legalidade”, sustenta a defesa.

As “pedaladas” consistiram num represamento de recursos do Tesouro a bancos oficiais, que se viram obrigados a arcar com pagamentos de benefícios sociais, como seguro- desemprego, abono salarial e Bolsa Família. Segundo o TCU, a manobra teve o objetivo de melhorar artificialmente as contas públicas, e violou a Lei de Responsabilidade Fiscal ( LRF), por ter configurado uma operação de crédito. A defesa de Dilma afirma que a prática ocorre desde a década de 1990, e que o TCU, em nenhum momento, considerou a manobra irregular.

O mesmo raciocínio jurídico foi adotado para as outras irregularidades apontadas, como a falta de contingenciamento de recursos em 2014 e a edição de um decreto presidencial que acabou liberando os ministérios para fazerem gastos extras. O governo diz ter se baseado na piora da economia e na perspectiva de aprovação de nova meta fiscal no Congresso. A AGU reproduz na defesa casos semelhantes ocorridos no passado, que não foram contestados pelo TCU.

Os contratos firmados com a Caixa para o pagamento do Bolsa Família e de outros benefícios “foram objeto de auditoria por parte da CGU e do TCU por mais de 14 anos, não havendo qualquer apontamento sobre eventual irregularidade na previsão contratual”, cita o documento protocolado no TCU.

A defesa de Dilma reproduz o trecho de um contrato de prestação de serviços assinado pelo próprio TCU, em que cláusulas preveem juros e correção para eventuais atrasos de pagamento. Para a AGU, a prática é similar ao que se contesta como “pedaladas” do Tesouro Nacional. Adams já havia usado esse argumento, que provocou reação no TCU.

No início da noite, Adams se reuniu com Dilma. Na saída, disse não acreditar que a crise política possa ter influência no julgamento:

— Acho que o tribunal tem se notabilizado pelas preocupações de aperfeiçoamento técnico da administração. Um tribunal que se paute por decisões políticas deixa de ter função. O governo quer e acredita no debate técnico. Nossa manifestação foi técnica, que analisou cada um dos apontamentos, mostrando a razoabilidade, a aderência à lei e a observância da jurisprudência tradicional.

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que as razões da defesa são “indestrutíveis”.

— É uma defesa que não deixa nenhuma dúvida sobre a legalidade das contas da presidente. Não há ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal. E estamos muito distantes da possibilidade de qualquer participação da presidente em algo que pudesse ser reprovável criminalmente. Estamos absolutamente tranquilos porque as razões são indestrutíveis.

 

Julgamento se equilibra entre duelo técnico e político

Os especialistas em contas públicas estão acostumados a usar a palavra “pedalada” para se referir a um adiamento de gastos já comprometidos. No orçamento doméstico de cada um de nós, o termo não é usado, mas a maioria dos brasileiros sabe bem do que se trata: num momento de aperto, jogamos uma despesa inevitável para frente para fechar as contas do mês.

Esse tipo de manobra também é usada pelo governo. Nos últimos dois anos, a crise da economia e as reduções de impostos para tentar animar os empresários derrubaram a arrecadação e fizeram a equipe econômica adiar repasses para os bancos públicos. O dinheiro era destinado ao pagamento de benefícios sociais, como o Bolsa Família, e o adiamento ( ou “pedalada”) ajudou o governo a melhorar suas contas.

E por que, então, toda essa celeuma? A questão é que, ao segurar os repasses, o governo obrigou os bancos públicos a usarem recursos próprios para pagar os benefícios. A Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe esse tipo de operação, porque, a rigor, o dinheiro do banco é o dinheiro dos correntistas. A lógica da lei é protegê- los de conveniências político- econômicas. E é isso que está em julgamento no Tribunal de Contas União ( TCU).

Como a análise das “pedaladas” pode levar à rejeição das contas de Dilma, o que teria consequências imprevisíveis no Congresso, o governo organizou uma tropa para montar sua defesa — uma peça com cerca de mil páginas foi entregue ontem aos ministros do TCU.

Do ponto de vista técnico, soam razoáveis os argumentos reunidos. Em resumo, o governo alega que essa prática sempre existiu e nunca foi contestada pelo TCU. Diz ainda que não descumpriu a lei, pois, em sua visão, o que existiu entre os bancos e o Tesouro ( responsável pelos repasses) não foi um “empréstimo”, mas um contrato de prestação de serviços que não resultou em prejuízo.

Por sua vez, alguns ministros sustentam que, mesmo que já tenham sido usadas no passado, as “pedaladas” se tornaram sistemáticas na gestão Dilma, afetando excessivamente o resultado fiscal e configurando os “empréstimos” que a Lei de Responsabilidade Fiscal veda.

No entanto, no julgamento, a questão que mais ameaça o governo não é de natureza técnica. O TCU, embora tenha a missão de lidar com a frieza dos números, é talvez o mais político dos tribunais. Seis de seus nove ministros têm origem no Congresso, sendo três indicados pelo ressentido PMDB ( Raimundo Carreiro, Vital do Rêgo e Bruno Dantas).

No tribunal, a hipótese mais provável hoje é a da rejeição das contas. Entre outros pontos, haveria entre os ministros uma insatisfação com a virulência do governo na defesa das “pedaladas”, com queixas à atuação do tribunal. A hipótese é potencializada pelo atual cenário de crise. Há quem diga que até os próximos protestos contra Dilma, marcados para 16 de agosto, podem influenciar o resultado. Com uma coalizão em frangalhos, tudo e todos parecem ameaçar o governo.