Menos preconceito

 

Durante séculos, o abuso de álcool foi visto como um “vício moral” e de responsabilidade exclusiva do indivíduo. Apenas em 1849, o médico sueco Magnus Huss usou o termo “alcoolismo”, mostrando que a dependência química era, na verdade, questão de saúde. Mais de 150 anos depois, em muitos países as políticas públicas que abordam o uso de drogas ainda concentram parte de suas ações em um modelo proibicionista e na criminalização dos usuários, em uma estratégia que parece estar caminhando para a mudança.

Após décadas de tentativas mal sucedidas, especialistas têm afirmado: é preciso abandonar o modelo atual. As políticas que se desenvolveram em torno da repressão fracassaram. Segundo a ONU, o mundo tinha, em 2012, cerca de 240 milhões de usuários de drogas ilícitas. Desses, 27 milhões faziam uso abusivo das substâncias.

No Brasil, o número de prisões relacionadas ao porte ou venda de drogas triplicou em oito anos ( entre 2005 e 2013), de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional. Mas a escalada repressiva não trouxe impactos para o número de usuários no país. A punição que deveria atingir os grandes traficantes alcança, na verdade, as maiores vítimas do consumo.

Existem, em todo o mundo, grupos de apoio e ajuda mútua que trabalham junto a usuários de álcool e outras drogas, com uma abordagem voltada à reformulação da personalidade. Apenas o Alcoólicos Anônimos ( AA) engloba mais de dois milhões de membros no mundo — 120 mil no nosso país.

O desafio da mudança de comportamento e personalidade, diante da realidade de usuários criminalizados, não contribui para facilitar a adesão; pelo contrário, acaba por afastá- los dos serviços de saúde. Além das consequências advindas da droga, essas pessoas estão expostas a outros riscos, que envolvem tanto aspectos físicos, como a infecção pelo HIV e a tuberculose, quanto emocionais e psicológicos. Nesse contexto, o modelo de combate às drogas orientado para a saúde pública atua reduzindo danos e melhorando a qualidade de vida do usuário. O foco passa a ser o indivíduo e não mais a droga.

A abordagem de redução de danos se constitui num conjunto de estratégias de proteção ao usuário de drogas que, corresponsável pelas suas condutas, tende a controlar melhor o seu consumo. O objetivo central deste modelo, independentemente de viver longe das drogas, é tratar cada usuário em sua singularidade, suas motivações e seus sentimentos.

A adoção de políticas voltadas para a saúde pública é o melhor caminho para lidarmos com o problema das drogas. Num momento em que a sociedade brasileira cada vez mais defende posições conservadoras sobre diversos temas, entre eles questões de gênero, raça e sexualidade, o debate sobre a dependência química se faz necessário para que enfrentemos o problema com lucidez, reflexão propositiva, conhecimento das experiências exitosas no Brasil e no mundo e, sobretudo, sem preconceito.