Uma punição leve contra o preconceito

15/07/2015

MARCELLA FERNANDES E JÚLIA CHAIB

O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violência contra Jovens Negros, da Câmara dos Deputados, apresentado ontem, prevê a revisão do crime de injúria racial e a obrigatoriedade de se criar o Disque Racismo, canal de denúncias em todos os estados. Reportagens do Correio publicadas desde o último domingo mostraram a dificuldade de se obter dados relacionados a ocorrências e ações judiciais de discriminação racial. E que a maioria dos episódios acabam classificados como injúria, um delito mais leve que racismo. O presidente do colegiado, Reginaldo Lopes (PT-MG), afirmou que apresentará ainda projeto de lei para trazer expressões e contextos para diferenciar ambos os crimes. O parlamentar convocou sessão para votar hoje o texto da CPI.

Tanto o Executivo quanto o Judiciário desconhecem o número de ocorrências e ações judiciais de racismo e injúria racial. Levantamento do Correio mostrou que houve mais de 12.891 ocorrências de discriminação racial nos últimos três anos e meio, enquanto a Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir) recebeu apenas 1.676 denúncias no período. Da pesquisa feita pela reportagem, 68% (8.741) eram de injúria.Segundo a relatora da CPI, deputada Rosangela Gomes (PRB-RJ), o relatório será adaptado para que cada unidade da Federação crie o próprio Disque Racismo.

Hoje, só o Distrito Federal conta com um canal direto de denúncias. Faz dois anos que a Seppir promete a criação de um número nacional, que ainda não saiu do papel. Já a revisão do delito de injúria tem o objetivo de “estabelecer uma diferenciação mais objetiva em relação ao crime de racismo”, como diz o texto. Para o presidente da CPI, a distinção dos delitos é fundamental e uma forma de combater o preconceito institucional. “Propomos as novas recomendações com base nas reportagens do Correio.

Os crimes de racismo não podem ser transformados em injúria pela lógica de um racismo institucionalizado no país”, afirmou.Rosangela avalia que há uma impunidade institucional em relação aos casos de preconceito. “Existe um racismo silencioso, escondido no nosso país, mas que muitos não aceitam e não acreditam”, afirma a parlamentar, que diz ser vítima de preconceito diariamente. Segundo ela, a discriminação resulta, em última instância, em episódios de violência grave, e a verba destinada para enfrentar a questão é insuficiente.

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Outras medidas

Entre as principais propostas do CPI está a criação do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens. Ambas as iniciativas serão discutidas em uma comissão especial, caso o texto seja aprovado no colegiado. O primeiro prevê a arrecadação de recursos para políticas voltadas para o combate ao racismo. O segundo trata de ações diversas, desde campanhas de conscientização contra o preconceito a melhora na elaboração de dados estatísticos de violência e integração na atuação dos órgãos estatais.

Para o professor de direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Cléber Lázaro Julião Costa, é preciso que o poder público reconheça de fato a existência do racismo para enfretá-lo de forma eficaz. “No Brasil, a democracia racial foi colocada como um mito ou ideal em virtude de sermos um povo mestiço. Esse discurso é contraditório porque as normas expressam essa suposta mistura, mas a gente sabe quem é vítima de discriminação racial. É só observar estatisticamente, inclusive nos cargos de comando. Você quase não vê nas manifestações políticas atores negros”, afirma ele, que também é pesquisador do na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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A história de uma luta diária

Aos 77 anos, a arteeducadora Lydia Garcia relata uma história de vida de luta diária pelo fim do preconceito. Nascida em 1938, ela trocou a Lapa, no centro do Rio de Janeiro, por Brasília, aos 22 anos. Aqui, tornou-se referência do movimento negro e criou cinco filhos. Todos com nomes de origem africana: Kenya, Mali, Luena, Yalê, Kwame. “Foi uma afirmação da identidade, uma volta às raízes”, conta a primeira presidente do Conselho do Negro no Distrito Federal.O histórico de combate marcado por episódios de preconceito é sentido no dia a dia. “São situações desagradáveis.

Na minha própria casa, algumas vezes eu fui discriminada por alguém que bateu na porta e achou que tinha que chamar a patroa”, conta. O mesmo aconteceu em sua atuação como professora de música. “Já fui discriminada por pais de alunos que me viram num ambiente mais sofisticado, se sentiram mal e depois vieram dizer que eu tinha que ficar atrás de um fogão”, diz ela, que também foi fundadora do ateliê cultural especializado em moda étnica.

O encontro que a carioca guarda na memória ocorreu com o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, em 1991, na Universidade de Brasília (UnB). Anos depois, um reencontro, também na cidade. “Pelo rádio sabia que ele ia dar uma entrevista num hotel. Fui para lá na hora. Quando cheguei, o carro dele parou, ajudei a abrir a porta e ele me deu o braço.”