O laranjal da Lava-Jato

30/08/2015

Cleide Carvalho

De 84 empresas de fachada identificadas pela PF, 55 movimentaram R$ 2,6 bi.

São Paulo- Depois de ver seu barraco condenado num deslizamento de terra no Jaçanã, na Zona Norte de São Paulo, em 2011, Andréa dos Anjos Bastião aceitou se tornar "sócia" da Rigidez, construtora de fachada que serviu para desviar R$ 48 milhões de obras públicas por meio de falsos contratos de prestação de serviços com as maiores empreiteiras do país. Pelo negócio, Andréa, que não foi localizada pelo GLOBO, virou laranja da empresa e recebeu cerca de R$ 1 mil por mês até o início de 2014. Com a deflagração da Lava-Jato, os depósitos cessaram. A casa de Andréa, hoje de alvenaria, com três pavimentos, interfone e grades altas, ficou inacabada. 

Dentro da operação que investiga as fraudes na Petrobras, a Rigidez aparece como uma das 84 empresas de fachada ou "noteiras" - como são conhecidas as que apenas abastecem com notas fiscais o pagamento de propinas - que irrigaram partidos políticos, agentes públicos e intermediários de repasses no esquema de desvios de recursos. Dessas, 55 movimentaram R$ 2,8 bilhões entre 2009 c o início deste mês, segundo levantamento feito pelo GLOBO em ações judiciais ou inquéritos tornados públicos pela Justiça Federal do Paraná. As demais empresas seguem na condição de investigadas, sem identificação de valores movimentados. Não estão incluídos no levantamento os inquéritos cm curso no Supremo Tribunal Federal, que estão sob sigilo e envolvem políticos no exercício de mandatos. 

Para se ter uma ideia, esse valor seria suficiente para construir 65 mil casas do programa Minha ("asa Minha Vida, a um custo médio de R$ 40 mil. Apenas as duas empreiteiras cujas cúpulas foram condenadas em primeira instância, OAS e Camargo Corrêa, pagaram R$ 91,5 milhões a quatro empresas de fachada - e elas não param de se multiplicar nas investigações da Polícia Federal. 

O esquema que, segundo o Ministério Público Federal, irrigou três dos principais partidos políticos do país - PT, PMDB e PP - passa por homens apresentados como consultores de sucesso, falsas empresas de engenharia e escritórios de contabilidade habituados a recrutar pessoas em dificuldades financeiras, em geral pobres, para assumir a posição de "laranjas" Em troca de ajuda, elas aceitam figurar como "sócias" em firmas de fachada, usadas para movimentar milhões de reais. 

RICOS E POBRES NO MESMO GOLPE Ao lado de empresários como Milton Pascowitch, dono da Jamp, que movimentou pelo menos R$ 45 milhões e fez depósitos para o ex-ministro José Dirceu, estão pessoas que não têm noção dos milhões negociados. 

É o caso do aposentado Eufranio Alves, morador do bairro Casa Verde, também na Zona Norte da capital paulista. Em 2012, com problemas de saúde e recém-recuperado de uma cirurgia no fêmur, Alves se viu envolvido no esquema da empreiteira Delta, na Operação Monte Cario da Polícia Federal. Na época, a empresa dele havia sido flagrada por ter recebido R$ 950 mil. 

O tempo passou, e o foco das investigações hoje é outro, mas Alves continua servindo de laranja, agora na Operação Lava-Jato. A RCI Software, sua empresa, reapareceu com movimentações acumuladas de R$ 16,8 milhões desde 2009. 

O aposentado, que até hoje se diz surpreso com a irregularidade, afirma que apenas aceitou o pedido de um amigo para se tornar sócio da empresa. Alega não ter recebido um tostão. 

- Nunca mais ele apareceu aqui em casa - reclama Alves. 

O amigo em questão é Waldomiro de Oliveira, com diversas passagens pela polícia por estelionato, segundo relatório da Polícia Federal. Na Lava-Jato, foi condenado a 11 anos e seis meses de prisão por lavagem de dinheiro e participação em quadrilha, ao lado do doleiro Alberto Youssef. 

- Sc eu sonhasse que estava sendo feito algo ilícito, jamais teria feito. Com essa idade, não ia fazer uma coisa dessas - disse Oliveira ao depor à Justiça Federal do Paraná. 

A rede de firmas de fachada não está restrita a laranjas. O negócio é tão rentável que muitos dos intermediários eram conhecidos como empresários de sucesso, como o operador Júlio Camargo, que criou três empresas - Auguri, Trcviso e Piemonte - para repassar propina no esquema que envolve a área Internacional da Petrobras. Juntas, elas remeteram para o exterior mais de R$ 50 milhões. Camargo é hoje um dos delatores do esquema. 

As empresas de fachada servem para dar ares de legalidade ao desvio de recursos públicos. Em geral, contratos, notas fiscais, depósitos e transferências bancárias são absolutamente legais, a não ser pelo fato de as empresas não terem sequer funcionários e não terem prestado serviço algum. A receita é a mesma para vários grupos criminosos investigados pela Polícia Federal. Numa única ação contra a dolcira Ncima Kodama, que atuava no ABC paulista e foi condenada na Lava-Jato, foram identificadas cinco empresas desse tipo, que movimentaram R$ 18,126 milhões. 

Adir Assad, operador que se tornou conhecido na investigação da empreiteira Delta, é suspeito de controlar pelo menos seis empresas de fachada, ainda alvos de investigações. Recentemente, a PF descobriu que essas empresas também receberam dinheiro de cinco pequenas centrais hidrelétricas localizadas no Mato Grosso. 

Uma das locadoras usadas pelo grupo de Assad foi a JSM Engenharia e Terraplanagem. A sede dela é um casarão antigo, uma espécie de "escritório virtual" em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo. Na porta, uma placa da Lokal Assessoria anuncia venda e aluguel de imóveis. Na recepção, só uma mesinha velha com telefone. A recepcionista afirma que a JSM foi, sim, cliente, até 2013, e fornece o telefone do contador. 

O responsável pelo escritório, que não quis ser identificado, afirma que atualmente o endereço serve a cerca de dez empresas. E se defende: não tem nada de ilegal nisso. 

- Nenhum empresário precisa ficar esperando alguém aparecer. Ele pode trabalhar no Brasil todo - justifica. 

No mesmo município ficava outra empresa do grupo, a SM Terraplanagem, que usou o endereço de uma casa alugada a uma técnica de enfermagem. Na conta da SM, que não tem uma máquina sequer para alugar, foram descobertos depósitos de cerca de R$ 199 milhões.

O passo a passo da fraude
Em mensagem, operador mostra a empresa como utilizar firma de fachada

Um e-mail apreendido pela Polícia Federal mostra como empresas e operadores negociavam o uso de firmas de fachada para reduzir o risco de serem flagrados em investigações. Enviada em junho de 2010, a mensagem entre um operador e um representante de uma empresa do setor de energia sugere trocar notas de falsas consultorias por pagamentos a firmas de fachada do setor de locação de máquinas e equipamentos.

Eles fazem uma espécie de passo a passo do esquema: "Funciona assim: a empreiteira contrata a locadora, com compromisso de pagamento pelos equipamentos somente quando a empreiteira emitir os relatórios de medições correspondentes/desejadas. É a única forma de comprovar que os equipamentos foram utilizados pela empreiteira. Após eles receberem a medição, emitem a nota fiscal para a empreiteira (tudo legal e recolhidos os tributos pela locadora). Para todos os efeitos, a empreiteira contratou serviços de locação de máquinas. Desta forma podemos cancelar o contrato de consultoria, uma vez que a empreiteira está pagando a locação de máquinas (prática comum para ela)".

No e- mail, o emissor afirma que grandes empreiteiras estavam fazendo esse tipo de operação. "Esta é a operação que desenhei para resolver para todos", assinala, lembrando que ainda estava "vendo" notas de material de construção e de advocacia.

O esquema foi montado para repassar propinas de pequenas hidrelétricas do Mato Grosso para empresas controladas pelo operador Adir Assad, um dos presos da Lava-Jato. A PF identificou repasses superiores a R$ 6 milhões.

Nas mensagens trocadas para avisar sobre o envio de propinas, os repasses eram citados com ironia: "Embarque de hoje" e "Velocidade de hoje" são alguns dos termos usados.

A investigação chama a atenção também porque envolve autorizações para construir barragens capazes de alterar o fluxo das águas para o Pantanal.