Rumo a uma vacina universal contra a gripe

 

A prodigiosa capacidade do vírus da gripe ( influenza) de mudar a configuração externa de suas proteínas e assim escapar das defesas de nosso organismo é o principal obstáculo na busca por uma chamada vacina universal contra a doença, isto é, que ensine o sistema imunológico a atacar todos os seus variados subtipos, dispensando a elaboração e a administração anual de um novo imunizante. Entre estas proteínas está a hemaglutinina ( HA), que o vírus usa para se ligar às nossas células para poder invadi- las e se multiplicar em seu interior.

Mas enquanto a “ponta” da hemaglutinina, alvo primário de nossos anticorpos para a gripe, passa por alterações frequentes, o que impede que estas pequenas moléculas em forma de Y que são os “soldados” de nosso sistema imunológico se unam ao vírus e evitem que ele infeccione nossas células, a estrutura base da proteína, ou seja, seu “caule”, praticamente não sofre mutações, justamente para não atrapalhar seu trabalho de abrir caminho para que o vírus invada nossas células. E é de olho nesta estabilidade que dois grupos de pesquisadores, atuando de forma independente, relataram ontem avanços na obtenção de uma vacina que estimule as defesas do organismo a atacar esta base da hemaglutinina e não apenas sua “ponta”, oferecendo assim proteção contra as diversas “versões” do vírus.

— Nosso estudo mostra que estamos caminhando na direção certa na procura por uma vacina universal contra a gripe — comemora Ian Wilson, cientista do Instituto de Pesquisas Scripps, nos EUA, e integrante de um dos grupos, cujos resultados foram publicados on- line ontem no site da prestigiada revista “Science”. — Se o corpo consegue produzir uma resposta imunológica contra o caule da hemaglutinina, o vírus terá dificuldades de escapar.

TREINANDO UMA “TROPA DE ELITE”

Para isso, os cientistas criaram uma maneira de remover a variável “ponta” da proteína viral, expondo sua estrutura base à reação do sistema imunológico. Assim, ele pode produzir em grande quantidade os chamados anticorpos de ampla neutralização ( bnAbs, na sigla em inglês) contra o influenza, algo como uma “tropa de elite” no exército de defesa do organismo que raramente é “treinada” para combater a gripe. Em testes com camundongos e macacos, um imunizante feito com uma versão da hemaglutinina “decapitada” protegeu os animais de vários subtipos do vírus, inclusive os da família do H5N1, causador da gripe aviária, contra o qual as atuais vacinas anuais não surtem efeito e que já provocou diversos surtos epidêmicos ao redor do mundo, matando quase 400 pessoas desde que a primeira infecção de seres humanos por ele foi identificada, em 1997.

— Esta foi a prova do princípio — conta Wilson. — Os testes demonstraram que os anticorpos produzidos com um dos subtipos do influenza deram proteção contra outros subtipos. E embora ainda reste muito trabalho a ser feito, o objetivo final, é claro, será criar uma vacina que dure a vida inteira.

Já o trabalho do segundo grupo de pesquisadores, publicado na edição desta semana da revista “Nature Medicine”, teve uma abordagem ligeiramente diferente. Nele, os cientistas produziram nanopartículas estáveis similares ao “caule” da hemaglutinina do subtipo 1 ( H1), que foram ligadas a substâncias adjuvantes, desenhadas para estimular ainda mais a resposta imunológica, para criar a vacina. Administrado em camundongos e furões, o imunizante protegeu os animais não só contra os vírus com o mesmo subtipo da proteína como evitou os piores sintomas e a morte quando eles foram deliberadamente infectados com quantidades potencialmente letais do H5N1 — apesar de os anticorpos gerados não terem se mostrado capazes de neutralizar por completo o subtipo da gripe aviária. Os adjuvantes usados nesta pesquisa, no entanto, não são aprovados para administração em humanos, e os cientistas ainda precisam provar que obteriam o mesmo tipo de resposta imunológica com substâncias permitidas para uso humano.

— Estes são achados animadores vindos de pesquisadores altamente respeitados e conhecidos por sua atenção aos detalhes — comenta Garry Lynch, professor da Universidade de Sydney, na Austrália, e especialista em gripe, que não tem relação com nenhum dos dois grupos de cientistas responsáveis pelos avanços na busca por uma vacina universal contra a doença. — O mais importante é que estes estudos trazem as necessárias evidências sólidas de que anticorpos que têm como alvo uma região estável da hemaglutinina podem fornecer uma proteção ampla contra diferentes linhagens do influenza. Mas para uma proteção verdadeiramente universal, é preciso estudar e testar outros subtipos do influenza. De qualquer modo, esperamos mais avanços maravilhosos nesta área de forma que uma vacina verdadeiramente universal contra a gripe se torne uma realidade.

TESTES AINDA VÃO LEVAR ANOS

Outro que está otimista é o pneumologista brasileiro Carlos Alberto de Barros Franco, que, no entanto, destaca que ainda vai demorar para uma vacina universal contra a gripe chegar ao mercado.

— Existem várias pesquisas sobre o tema há bastante tempo. E “estar perto”, na medicina, não é uma viagem do Rio de Janeiro a Petrópolis. Estar perto na medicina são, no mínimo, cinco anos — diz Barros Franco. — Mas, se der certo, será fantástico. As pessoas não precisarão encarar a vacina todo ano. E isso poderá ser um passo enorme para a criação de outras vacinas cujos vírus sofrem mutação, assim como o da gripe, em que os antígenos da superfície se modificam. A dificuldade é exatamente essa: identificar e isolar o antígeno que não sofre a mutação e desenvolver a vacina.

Opinião semelhante tem Walter Orenstein, professor da Escola de Medicina da Universidade Emor y, nos EUA , e também não relacionado com ambos os grupos de pesquisadores. — As abordagens que estão sendo desenvolvidas de fato oferecem potencial para uma vacina universal contra o influenza, mas estes são estudos com animais, então ainda estamos muito longe de desenvolver e testar uma vacina em humanos — considera. — Mas as técnicas são promissoras e um passo na direção certa. Os estudos devem ser aprofundados mais e esperamos que sejam bem-sucedidos.

Por fim, Sarah Gilbert, professora da Universidade de Oxford, no Reino Unido, destaca que, ao ter como alvo parte do vírus que não sofre mutações, ambas as vacinas superaram um grande obstáculo, mas ainda devem passar por ensaios clínicos controlados com humanos para se saber como e por quanto tempo ofereceriam proteção contra o vírus.

— São desenvolvimentos excitantes, mas as novas vacinas precisam ser testadas agora em ensaios clínicos para saber o quão bem elas funcionam em humanos — lembra Sarah. — Esta será a próxima fase da pesquisa, que ainda vai demorar muitos anos. Assim, ainda estamos um tanto distantes de ter melhores vacinas contra a gripe para serem aplicadas em seres humanos.