Entre a memória e a perplexidade

 

Militantes que foram banidos do país junto com Dirceu se dividem sobre seu destino. Já passava das quatro da tarde do dia 6 de setembro de 1969 e o que se ouvia na Base Aérea do Galeão, no Rio, era apenas o silêncio. Ali, se enfileiravam feito time de futebol 13 dos 15 presos políticos trocados pelo então embaixador americano, Charles Elbrick, sequestrado dois dias antes por grupos de esquerda. Diante do Hércules que os levaria ao exílio, o segundo jovem de pé, da esquerda para a direita, chamava atenção por ser o único a cerrar os punhos e a elevá-los, para mostrar as algemas. Era o líder estudantil José Dirceu, que, anos depois, ergueria o punho cerrado ao ser preso por conta do mensalão.

Os presos rumaram para o México e foram do Brasil até lá ouvindo discursos do então presidente Costa e Silva. No país, ficaram juntos por 30 dias. Vencido esse período, 13 decidiram seguir para Cuba.

Hoje, de todos os militantes que voaram no Hércules, além de Dirceu, cinco estão vivos: o jornalista e escritor Flávio Tavares, o músico Ricardo Vilas, o engenheiro Ricardo Zarattini, o professor e ex-deputado Vladimir Palmeira e o médico Mário Zanconato, que não aparece na foto tirada no Rio porque só embarcou no Pará. Foi com eles que O GLOBO conversou sobre o que acham da situação do país e do exministro, agora preso na Operação Lava-Jato.

Ao ser exilado, Flávio Tavares ficou seis anos no México e depois passou por Buenos Aires, Montevidéu e Lisboa até voltar ao Brasil com a Anistia. Aos 80 anos, vive em Búzios (RJ). Foi lá que relembrou histórias e deu sua opinião sobre o ex-ministro. Contou que, quando chegaram ao México, o emprego que conseguiram foi como dublador de novela mexicana. Flávio, Dirceu e Maria Augusta Carneiro, outra presa política trocada pelo embaixador, dublariam para o português a história de “Rubi”, que seria exibida na TV Tupi. O projeto foi interrompido com a ida da maior parte do grupo para Cuba. Passados quase 46 anos da viagem para o exílio, Flávio diz:

— Dirceu é um dos responsáveis pelo mensalão, senão o principal responsável. Talvez tenha sido um beneficiário, mas acho que não foi — afirma o escritor, contando acreditar que Dirceu achava que o processo prescreveria: — Lobista é um traficante de influência, e isso é o que o Dirceu é. Por isso digo que tenho pena dele. Ele é um sujeito inteligente, corajoso e, por ser presunçoso, se deixou levar e se transformou num traficante de influência.

Tavares, no entanto, diz que não se pode achar que Dirceu é o inimigo número um do país, porque isso pode ocultar a culpa de outros na Lava-Jato.

Aos 70 anos, Vladimir Palmeira é um dos fundadores do PT, assim como Dirceu, e concorreu ao governo do Rio em 2006. Abandonou o partido em 2011, quando o ex-tesoureiro Delúbio Soares, condenado no mensalão, voltou a ser filiado ao PT.

Hoje, filiado ao PSB, Vladimir ocupa o tempo dando aulas de economia numa faculdade particular do Rio. E lembra ter conhecido Dirceu em 1967, quando o então líder estudantil tinha o apelido de Ronnie Von, pelos cabelos parecidos com os do cantor e pela aura de galanteador. Depois da condenação pelo mensalão, Vladimir, que defende o amigo, visitou Dirceu durante a prisão domiciliar.

— Não vi provas no mensalão (contra Dirceu). Foi condenado, precisamos respeitar a decisão. Agora (na Lava-Jato), vamos ver — diz Vladimir, que passou por Cuba, Argélia e Bélgica até voltar ao Brasil com a Anistia, em 1979.

Com 81 anos, Ricardo Zarattini vive em São Paulo. É filiado ao PT, e seu filho, Carlos Zarattini, é um dos quadros do partido na Câmara dos Deputados. O engenheiro diz que o mensalão foi julgado “ao sabor de uma pressão muito grande".

— Nem no processo do mensalão e muito menos agora foi divulgado concretamente o que há contra ele. São muitas pressuposições — diz Zarattini, que se exilou em Cuba e no Chile até voltar clandestinamente, em 1974.

O músico Ricardo Vilas, que presta solidariedade a Dirceu, resolveu não se exilar em Cuba, assim como Flávio Tavares. Vilas ficou no México até janeiro de 1970, quando foi para a França, onde continuou a carreira musical, e regressou ao Brasil com a Anistia. Atualmente, vive no Rio e é gerente de música da EBC.

— Acredito na sinceridade do José Dirceu. No mensalão, penso, como muitos outros, que sua condenação se deu sem provas devidamente estabelecidas — diz o músico de 65 anos por e- mail, afirmando que, na Lava-Jato, deve-se esperar as provas.

O médico Mário Zanconato foi o que mais tempo permaneceu fora do Brasil. Ficou até 1993 em Cuba, onde casou. Lá, terminou a faculdade de Medicina e foi professor. Voltou ao país quando os tempos de vacas magras em Cuba se acentuaram com o fim da União Soviética. Aos 70 anos, trabalha no Detran de São Paulo com exames médicos e diz não poder opinar sobre Dirceu.

— Não tenho elementos para defender ou atacar. A única força que tenho a favor dele é o histórico — diz o médico, que embarcou no Hércules assobiando a “Internacional”, hino dos comunistas.

Para ele, é difícil acreditar que Dirceu, vivendo tudo o que viveu e lutando pelo que lutou, tenha praticado crimes:

— Para mim, é impossível uma pessoa pensar tudo o que ele pensou, fazer tudo aquilo que fez, amadurecendo dentro de uma estrutura ideológica e, de repente, virar um corrupto e roubar dinheiro da Petrobras. Acho difícil. Aí, eu mesmo falo: mas fez vista grossa? Mas virou a cara para o outro lado enquanto isso acontecia? Não sei dizer.

VISÃO OTIMISTA DO FUTURO

Dos tempos em que eles deixaram o país aos dias de hoje, com democracia estabelecida, as mudanças foram muitas. E, otimista, a maioria acredita que o Brasil e a presidente Dilma Rousseff sairão das crises.

— A oposição deveria preservar o que de mais valioso foi construído desde o fim da ditadura, que é o regime democrático de direito. Querem a alternância? Ela poderá se dar pelas urnas, em 2018 — diz Vilas, para quem o governo deve trabalhar para superar as crises com diálogo.

Todos, no entanto, reconhecem que Dilma vive dias difíceis. Semana passada, houve protestos contra a presidente e o governo.

— Impeachment é um processo longo que só vai tumultuar mais a confiança do empresariado e a retomada do crescimento — opina Zarattini.

Sobre a crise, Zanconato diz que “o Brasil não está arruinado como está se falando”:

—Mas está numa situação difícil.

Para Vladimir, porém, a saída passa pela renúncia de Dilma e não pelo impeachment:

— A gente devia ir à rua pressioná-la a renunciar. Isso é legítimo. Ninguém tem projeto para o Brasil. Nem o PT, que agora está em plena hecatombe, nem o PSDB.

Tavares, por sua vez, demonstra decepção com o momento atual da política e chama a base aliada de “base alugada”. Cita ainda o “oportunismo perigoso da oposição” nesse momento:

— Não há uma proposta concreta, nem do governo, nem da oposição. A crise é dos políticos, não é nem da Dilma, nem do sistema.