LAVA-JATO REVIGORA O HUMOR POLÍTICO NA MÚSICA

 

— Olha o Carnaval 2016 aí, gente — ele grita no palco, a bordo de um paletó escuro, lapelas de seda emoldurando a negra gravata borboleta que emerge do colarinho branco. A banda acelera o ritmo, enquanto anuncia: — A marcha da delaçãao premiaada! Cinco vozes se unem em coro na marchinha de Pablo Pessanha: Num pacto de cavalheiro O empreiteiro deu dinheiro desviado O doleiro lavou a jato O chato é que foi desmascarado Na hora do petróleo derramado Cada um corre prum lado E vende a mãe pra se safar (bis) A delação premiada Pode te aliviar Entrega tudo Conta a tua falcatrua Pra polícia investigar (bis) (Aos gritos:) Mãos juntas... pra trás... e algemadas!

Episódios tragicômicos da corrupção na Petrobras revigoram o humor político subversivo, cuja matéria- prima está naquilo que realmente enfada e até injuria a sociedade. É o que mostram Chico e Paulo Caruso — “gêmeos amestrados da caricatura”, como se definem —, no musical “Trinta anos de democracia: ‘Que país é este?’”

A irreverência começa no título do espetáculo. Remete ao desacato de Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, ao ser preso sob acusação de receber suborno (2%) sobre contratos da petroleira estatal. Ecoa, também, o ácido rock “Que país é esse?”, de Renato Russo e Legião Urbana, registro poético de 1987 sobre uma fatia do mapa-múndi com sujeira por todo lado.

A comédia atravessa três décadas da política nacional, pincelando com crueza: Urubus rasantes sobre o orçamento Disponibilizando apenas um por cento Na mão do gato que gaiato já comeu As três refeições que o Lula prometeu... É um retrato — de fato! De um fruto doce que já apodreceu De tanto toma lá, dá cá, cadê o meu?

Expõe o lado burlesco de personagens que fizeram da vida pública mera extensão da privada, como no melódico verbete biográfico de José Dirceu, condenado por corrupção no caso do mensalão e agora preso por corrupção na Petrobras. A “Balada do Cruzeiro do Oeste” desnuda o ex-ministro-chefe da Casa Civil no governo Lula a partir dos braços de “Maçã Dourada”, sorridente morena informante que em 1968 ajudou a polícia a liquidar o Congresso da União Nacional dos Estudantes, em São Paulo. Prenderam centenas — entre eles, Dirceu: Vamos contar agora A história do Zé Dirceu Comeu a Maçã Dourada Depois apodreceu (...) Depois de exilado Em Cuba ele estudou Táticas de guerrilha Como tomar o poder Fez seu doutorado Com o comandante Tchê! Em Cruzeiro do Oeste Ele se refugiou (...) Mas quando virou ministro Foi que ele se revelou Teve um caso com o descaso Valdomiro logo estourou Daí pra diante Foi tanta explicação Tropeçou nas palavras Se acabou no mensalão (...) Foi o mais poderoso Que o Planalto assistiu Esnobava o baixo clero Até que um dia sucumbiu Caiu em desgraça Ninguém lhe deu a mão Nenhum dos seus ex-amigos Demonstrou compaixão (...)

A ironia corrosiva não poupa plenipotenciários dessas três décadas de redemocratização. Em “Bom é ser presidente”, os gêmeos Caruso passeiam pela diversidade da biotipologia presidencial. Caricaturam o literato que sonha traduzir seus poemas para o russo e o chinês “aprimorando mais o meu português”; o prevaricador cujo delírio é “mergulhar em mar de lama de cara lavada”; o cientista social que pede “pra esquecer os livros que eu fiz”; e o populista com ideia fixa na reeleição “pra chegar no final e privatizar o assento presidencial”.

Dilma, vestida de marinheira, aparece no blues de Paulo Caruso “Cinquenta tons”, numa eterna busca pelo prazer da redundância: Uma quimera à espera da utopia Enfrentando o torpor do dia a dia Botando a cara sempre pra bater Mostrando ao mundo: Importa é estar presente Presidenta, presidente ou equivalente Ela ainda tem muito que aprender...

O humor pauta a música nativa desde o início do século XX. Em 1916, enquanto governantes subiam em palanques no Rio para discursar contra o jogo clandestino, o músico Ernesto dos Santos, o Donga, ironizava um chefe de polícia da capital federal que telefonava para avisar: na Rua da Carioca havia uma roleta para se jogar. Donga saiu de casa e foi a um terreiro de candomblé, onde compôs com amigos o primeiro samba gravado no Brasil (“Pelo telefone”).

Passados 99 anos, o músico Marcos Badega saiu de casa, entrou na sede da Polícia Federal, em Curitiba, pediu emprestado papel, caneta, encostou na bancada da recepção e rascunhou, arranhando as cordas de um violão azul: Lava Jato, Lava Jato, Lava Jato A Operação Lava Jato Está no encalço De mais um carrapato...

Pixuleco, propina repassada dentro de garrafa de cachaça, dinheiro lavado em igreja e posto de gasolina transformaram a investigação sobre corrupção no mais novo insumo básico da sátira musical em todo o país — e, como costuma dizer a presidente, “depois que a pasta de dentes sai do dentifrício, dificilmente volta”.

Ano passado, enquanto um ex-gerente da empresa estatal de petróleo prometia devolver US$ 97 milhões recebidos como suborno, o músico Germanno Júnior compunha “O cofre da Petrobras”, no ritmo do forró da sua Santa Cruz (RN), distante 130 quilômetros de Natal: A roubalheira é grande, a coisa tá demais Tão arrombando agora o cofre da Petrobras Estão lavando uma montanha de dinheiro No lava jato do doleiro Que a polícia já pegou (...) É Pasadena Okinawa Abreu e Lima Tem debaixo, tem de cima É muita grana, meu patrão Até parece uma história bem recente E pertencente ao famoso mensalão É mais um tapa na cara do meu Brasil, Vixe! E cada dia aparece mais ladrão

Em fevereiro, quando uma testemunha contou à polícia que parte das propinas da Petrobras eram negociadas em prostíbulos, o cearense Luiz Neto, “seu humorista predileto”, fantasiou-se de presidiário, com gravata sobre o colarinho branco, e gravou sua parceria com Emílio Diniz: Alô doutor juiz Vamos salvar nosso país Corrupção já não dá mais Tem que prender Os ladrões da Petrobras (...) É arrocho no salário Aumenta imposto Aumenta gás Pra cobrir o rombo Nos cofres da Petrobras Tira verba da Saúde Educação já nem tem mais Segurança tá falida É que o roubo tá demais É doleiro É diretor Empreiteiro E o escambau Caindo na Lava Jato Da Polícia Federal Quero ver chegar a vez Do político lalau Vai cair muita Excelência Lá no Congresso Nacional!

Humor é autodefesa. A quem não entender o “espírito da coisa”, sugere o escritor Ruy Castro, convém lembrar que o principal ingrediente na fabricação do soro antiofídico é o veneno.

Serviço: A comédia “Trinta anos de democracia: ‘Que país é este?’” estará no Teatro Solar de Botafogo, no Rio, nos finais de semana de setembro.

Na página do GLOBO na internet encontramse links para as obras citadas.