Com ou sem crise, China protagoniza realinhamento

25/07/2015

Deve-se ao belga Gerardus Mercator a façanha de representar o globo terrestre em um retângulo plano. Criado no século XVI, o mapa-múndi que ilustra qualquer livro escolar de geografia foi uma revolução cartográfica, mas guarda algumas distorções. Quanto mais afastados da linha equatorial, os continentes ficam artificialmente maiores do que na realidade. Erroneamente, um estudante do ensino fundamental pode pensar que a Groenlândia, por exemplo, ganha da China em tamanho. Na verdade, o território chinês é quatro vezes superior. Não deixa de ser curioso ainda como a Europa, na projeção de Mercator, ocupa o centro do mundo - trata-se, no fim das contas, apenas do ponto de vista que mais bem ilustrava o poder dominante à época.

Quase 500 anos depois, independentemente de variações maiores ou menores do PIB na China, há um realinhamento geopolítico em curso que coloca Pequim em evidência no mapa, a despeito de grandes temores sobre o risco de um pouso acidentado do gigante asiático. O cenário merece preocupação. Depois de terem triplicado de valor em apenas 12 meses, as ações nas bolsas da China caíram mais de 30% subitamente, gerando dúvidas sobre o estouro de uma temível bolha. A retração no mercado imobiliário local, embora tenha dado sinais de estancamento, alimenta o medo de um processo deflacionário. O endividamento das empresas chinesas equivale a 160% do PIB.

As taxas de expansão da última década não poderão mais se repetir e trazem impactos globais. No mínimo, essa desaceleração sepulta a possibilidade de reprodução do superciclo das commodities. Um relatório do Banco Mundial, divulgado na semana passada, mostra que elas estão com seus preços mais baixos em 12 anos. A cotação média do minério de ferro em 2015, que o banco vê em US$ 55 por tonelada, representa queda de 40% em relação ao ano passado. As commodities agrícolas devem ter uma redução de 11%.

O pessimismo que tomou conta das análises sobre a China, no entanto, precisa ser relativizado. Falando à elite mundial em Davos, em janeiro, o primeiro-ministro Li Keqiang já havia feito uma importante ressalva sobre os efeitos da desaceleração chinesa. Segundo ele, o crescimento atual de 7% equivale a um aumento no bolo econômico de US$ 800 bilhões, contribuindo mais para a riqueza nacional do que a expansão de 10% verificada cinco anos atrás. A China já se tornou o maior destino das exportações para nada menos que 43 países - eram apenas dois em 1990. Pequim detém as maiores reservas internacionais do planeta e demonstrou eficácia em suas iniciativas para evitar um crash das bolsas. Não há sinais de racha no comando do Partido Comunista.

Mesmo expondo suas fragilidades, a China executa dois movimentos com enormes repercussões na economia global, que seguem intocados. Um é a agressividade de companhias chinesas nas aquisições de grandes multinacionais em todo o mundo. Esse fenômeno deve ser observado pelo viés da integração de tecnologias e pela moldura de uma cultura de negócios sob o prisma chinês.

Outro movimento inabalável são os passos na direção de um "Plano Marshall" do século 21. Sem dinheiro, nem espaço político para grande ousadia em regiões do mundo sedentas por investimentos, os Estados Unidos abandonaram esse papel. No pós-guerra, a disseminação da democracia liberal e de uma economia de mercado foi incentivada pela fartura de dinheiro americano disponível para quem seguisse essa cartilha.

Hoje, o interesse chinês é negociar individualmente com países - sobretudo os emergentes - para maximizar o peso da China em cada um deles. Não se trata mais de uma conversa que se resuma a garantir o suprimento de commodities, nem de despachar mão de obra para outros mercados. Hoje, Pequim investe mundo afora de olho no alinhamento de governos estrangeiros às suas políticas industriais em setores estratégicos, na disseminação de padrões regulatórios, no uso do yuan como reserva internacional e na construção de uma nova arquitetura financeira.

Nada é tão emblemático como o recém-criado Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. O novo Banco dos Brics e a proliferação de fundos bilaterais de financiamento se colocam como alternativas bastante sedutoras para governos frustrados com instituições do sistema de Bretton Woods. Cabe aos emergentes, como o Brasil, aproveitar, com cautela e tentando extrair o máximo de benefícios, essa nova oportunidade.