O globo, n. 29897, 15/06/2015. País, p. 3

Direções opostas

Cristina Tardáguila e Marcelo Remigio

 

 

Varas de Infância e Justiça do Trabalho divergem sobre autorizações para empregar menores

Se o trabalho não prejudica a integridade física, intelectual e moral, não prejudica o estudo, não consigo visualizar qualquer prejuízo
Pedro Henrique Alves
Juiz titular da 1 ª Vara de Infância, Juventude e Idoso do Rio de Janeiro As empresas recorrem à Justiça comum para empregar menores de idade, mas isso é uma aberração. O trabalho do menor de idade está vetado pela Constituição
Danielle Kramer
Procuradora do Trabalho no Rio de Janeiro

No debate sobre como fazer frente à exploração do trabalho infantil, que ainda afeta 3,2 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos, a Justiça e o Ministério Público do Trabalho ( MPT) se chocam com as Varas da Infância e Adolescência. O motivo da disputa é a frequente emissão de alvarás que autorizam menores de idade a executar atividades profissionais. Os juízes e promotores do Trabalho veem nesses documentos uma violação à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA) e também à competência jurídica que lhes foi atribuída. Para os juízes das Varas da Infância e Adolescência, a concessão de autorizações para que menores sejam formalmente empregados, recebendo todos os direitos trabalhistas, pode ser um caminho dignificante ou mesmo a saída da miséria.

HANS VON MANTEUFFEL Nas ruas. Duas crianças contam as moedas que ganharam limpando vidros de carros em Recife: Justiças do Trabalho e da Infância se dividem sobre concessão de alvarás

Ontem, O GLOBO revelou que, em 2006, o Brasil se comprometeu junto à Organização Internacional do Trabalho ( OIT) a erradicar até 2015 as 89 “piores formas de trabalho infantil”, entre elas o doméstico, a exploração sexual e o comércio ambulante; mas, até o fim deste ano, não conseguirá atingir a meta acordada.

JUIZ DIZ QUE TRABALHO É “DIGNIFICANTE”

Segundo informações extraídas por especialistas da Relação Anual de Informações Sociais ( Rais), do Ministério do Trabalho, entre 2005 e 2010 foram expedidas mais de 33 mil autorizações judiciais liberando menores para trabalhar. Só no estado de São Paulo, foram 11 mil. Para jovens entre 10 e 15 anos, a Justiça concedeu, em 2010, 7.421 alvarás. No ano seguinte, o número caiu para menos da metade. A Justiça e o Ministério Público do Trabalho viram nessa queda o primeiro fruto de suas reclamações.

Na última semana, O GLOBO solicitou ao Conselho Nacional de Justiça ( CNJ) e ao Ministério do Trabalho dados atualizados sobre a emissão de alvarás judiciais para trabalho infantil, mas não obteve novos números.

No Rio de Janeiro, o juiz Pedro Henrique Alves é o titular da 1 ª Vara de Infância, Juventude e Idoso e, para não errar, prefere não arriscar o número de alvarás que concedeu a menores desde que assumiu o cargo, há cinco meses. Mas, ao opinar sobre esse tipo de autorização, defende a concessão dentro de limites:

— Acho o trabalho dignificante. É claro que aquelas formas de trabalho que são de alguma forma degradantes, que violem o direito da criança e do adolescente, devem ser combatidas, mas, se o trabalho não prejudica a integridade física, intelectual e moral, não prejudica o estudo, não consigo visualizar qualquer prejuízo.

Perguntado se aprova o trabalho a partir de qualquer idade, Alves reforça: — Sim. A partir de qualquer idade — diz. Pai de um menino de 4 anos, Alves conta que vem do interior e trabalhou em casa de família quando tinha 13 anos. Desde os 17, lembra, ele se sustenta e credita a isso o fato de ter sempre sido muito responsável e de ter chegado aonde chegou profissionalmente.

— Mas nunca abandonei os estudos — diz. — Quanto aos alvarás, o importante é saber se o trabalho proposto vai prejudicar a criança ou se vai contribuir para sua formação. Às vezes, elas são absolutamente pobres e aquele trabalho ajuda a sustentar a família. Às vezes, muda completamente a vida deles, sobretudo no caso de jovens infratores. Então, não vejo prejuízo.

Alves frisa que não permitiria que um menor participasse de um filme pornô, por exemplo:

— Mas não vejo mal algum numa criança participar de novela ou de propaganda de fraldas.

Já Danielle Kramer, procuradora do Trabalho no Rio, considera a concessão de alvarás judiciais para trabalho infantil “uma aberração”:

— As empresas recorrem à Justiça comum para conseguir essa permissão e empregar menores de idade, mas isso é uma aberração, algo inaceitável. O trabalho do menor de idade está vetado pela Constituição.

LEGISLAÇÃO PROÍBE TRABALHO ANTES DE 14 ANOS

Segundo a legislação brasileira, menores de 14 anos não podem trabalhar. A partir dessa idade, só com um contrato de aprendizagem, o que significa que o jovem será supervisionado, em locais que não afetem sua integridade física e moral, e que seguirá com seus estudos.

Silvana Abramo, diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, admite a disputa entre as duas correntes de pensamento, mas crê que, nos últimos anos, a conscientização sobre o assunto no Judiciário cresceu:

— Desde 2004, parece que está mais claro que a competência para atuar nesses casos é da Justiça do Trabalho. O Tribunal de Justiça de São Paulo e os Tribunais Regionais do Trabalho da 2 ª e da 15 ª regiões já recomendam a juízes que passem esse tipo de questão à Justiça do Trabalho. No Mato Grosso, também.

Mas, de acordo com Silvana, o número de solicitações de alvarás permanece alto.

— Na área coberta pelo TRT da 2 ª Região, que envolve São Paulo capital, a Baixada Santista e a Grande São Paulo, em 2014, houve 82 processos pedindo autorização para trabalho infantil. Até abril deste ano, foram 90.

Sueli Bessa, procuradora e membro da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT do Rio, enxerga a polêmica de outra forma:

— A lógica que se vê é a seguinte: a classe alta quer proteger seus filhos, quer lhes dar tudo do bom e do melhor, mantê- los longe do trabalho e do esforço físico. Mas encara o trabalho como a única salvação para o filho dos pobres, a única forma de melhorar de vida.

 

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Traficantes recrutam jovens por R$ 1 mil por semana                                      

 

A indústria de fogos que emprega trabalho infantil e mutila menores em Itaguaí, na Região Metropolitana do Rio, deixou de ser a maior preocupação dos conselheiros tutelares do município. Hoje, a ameaça também vem de bairros controlados pelo crime organizado. Traficantes de diversas facções recrutam adolescentes para os serviços de olheiros ( que vigiam a chegada de policiais e traficantes inimigos), vapores ( que vendem pequenas quantidades de drogas e monitoram os acessos às bocas de fumo) e seguranças de pontos de venda. De acordo com conselheiros, o tráfico chega a pagar R$ 1 mil por semana para crianças e jovens, um atrativo para a entrada no crime.

Traficantes agem em bairros próximos ao Centro de Itaguaí. Em locais como Brisamar, Jardim Uêda e Leandro, menores circulam livremente em motocicletas fazendo a escolta dos pontos de venda de drogas. Quem não é do bairro e chega ao local é impedido por jovens armados de passar. Investidas da população e da polícia para inibir a ação de traficantes são respondidas pelos criminosos com toque de recolher à noite e suspensão do serviço de lotações.

— Hoje o tráfico emprega nossos jovens de Itaguaí. É o dinheiro aparentemente fácil tentando nossas crianças — alerta a conselheira tutelar Conceição Aparecida Ginder Gouveia, a tia Cida, que aponta o fim aplicação do Prograna de Erradicação do Trabalho Infantil ( Peti) no município como um dos motivos para a ociosidade de menores:

— As ações foram absorvidas no governo anterior pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Mas acabaram descontinuadas. O atual governo que assumiu ( o prefeito Luciano Motta, sem partido, foi afastado pela Justiça para apuração de irregularidades em licitações) se comprometeu a rever a rede de assistência dos menores. É preciso fazer algo e combater esse mal.

Ao falar do risco permanente do recrutamento do tráfico de drogas, Tia Cida conta a história de um menor de 15 anos resgatado pelo Conselho Tutelar, mas que teve sua recuperação interrompida pela violência. A família do jovem, envolvido com o tráfico e dependente químico, pediu ajuda para a retirada do menor do vício e do crime. A equipe de conselheiros conseguiu tratamento durante um período na rede particular e vaga no sistema público. No entanto, a unidade pública ficava em uma área dominada por uma facção rival à do menor, que foi expulso do local e o tratamento, suspenso. O adolescente morreu há 15 dias de overdose.

Em meio ao clima de medo que se espalhou em bairros do município, mães temem pelos filhos:

— Meu filho tem 11 anos e todos os dias levo ele na escola. Alguns colegas falam para ele que isso é “pagar mico”, mas expliquei que isso é necessário — conta uma diarista e servente de obras que mora às margens da Rodovia Rio- Santos, próximo ao acesso do bairro Jardim Ueda, e que pede anonimato. — Faço estalinhos para conseguir um dinheiro. Às vezes, coloco meu filho para contar a produção. É arriscado, perigoso, porque, quando a massa de pólvora seca, ela pode explodir. Mas aqui ele está sob meus olhos. É menos arriscado que eu deixá- lo na rua e cair nas mãos do tráfico — afirma a diarista, que ganha menos de um salário mínimo por mês.

Colocar os filhos para trabalhar é cultural am Itaguaí, na avaliação do conselheiro tutelar Adriano Evangelista, de 38 anos

— É cultural. Existe uma defesa do trabalho como saída para evitar que o menor fique na rua. Os casos registrados são, na maioria das vezes, por não cumprimento da legislação pelo empregador. Casos como filhos que trabalham em oficinas dos pais ou fazem estalinhos são raros de serem denunciados, acontecem em âmbito familiar — explica.

Com o fim das ações do Peti, conselheiros tutelares afirmam que parte dos menores que atuava na produção de fogos retornou à produção. Outros, foram absorvidos pelo tráfico.