O globo, n. 29897, 15/06/2015. Dos Leitores, p. 10
Tema em discussão
Ensino religioso nas escolas públicas
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A separação entre Estado e Igreja não é um capricho, mas princípio de uma sociedade pluralista
Em 2010, o Brasil e o Vaticano assinaram um tratado de 20 pontos para regulamentar o relacionamento entre a República e a Sé. Como Estados soberanos, um e outro têm a liberdade de assinar convenções, eé o que fizeram. Mas, é de duvidosa competência das relações diplomáticas o ponto, consagrado no texto, que trata do ensino religioso no ciclo fundamental nas escolas do país.
À época, o tema foi alvo de intensos debates, em razão da laicidade do Estado garantida pela Constituição ( de resto, pela tradição republicana que remonta à Carta de 1891, que enterrou constitucionalmente o Império, e com ele a então prevalente repartição do poder político entre Deus e Cesar).
Menos mal que o constituinte de 88 teve o cuidado de inscrever na Carta ( art. 210) o reparo, em relação ao ensino religioso, de que se trata de matrícula facultativa. Esse entendimento é extensivo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que reforça o pressuposto de a disciplina não ser obrigatória, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, “vedadas quaisquer formas de proselitismo”.
Isso quer dizer que religião, de qualquer matriz, não pode ser ministrada na grade senão como objeto de estudo por seu aspecto cultural e histórico, jamais como forma de catequese. Como tema de interesse intelectual e pesquisas, com professores cumprindo seu papel pedagógico, e não como espaço para sectarismos de qualquer confissão religiosa.
A questão do ensino religioso na escola pública volta agora ao debate, na pauta do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade que provoca a Corte a determinar que a disciplina é secular, de natureza não confessional. A ação ( Adin), proposta pela Procuradoria- Geral da República, é um passo acertado para dirimir dúvidas quanto a limites e abrangência do que a Constituição permite nesse campo.
Assim como determina que o Estado é laico, expressamente vedando à União e a demais entes federativos ações para estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná- las ou manter com as ordens relações de dependência ou aliança, também a Carta garante a liberdade de culto religioso. Por óbvio, também protege a decisão do cidadão que não segue qualquer credo.
Esse não é o ponto da discussão. O que se bota agora na mesa são os riscos ao estado democrático de direito com a imposição, ao aluno e, por extensão, suas famílias, de celebrar em sala de aula qualquer rito. Até porque se abre aí um campo para um risco adjacente — o de se permitir a infiltração no ensino público do vírus da intolerância religiosa, com a administração de uma moral única, o que se contrapõe aos princípios de uma sociedade pluralista, justa, democrática.
Não há outro caminho admissível, no julgamento da Adin, que não o de obedecer ao princípio constitucional da laicidade. A separação entre Estado e Igreja não é um capricho, mas uma conquista republicana.
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Não se trata
de ferir o conceito do Estado laico, mas nossa religiosidade não pode ser negada
Ignorar a presença de Deus na vida dos brasileiros é o mesmo que virar o rosto para costumes que praticamos cotidianamente. Às vezes, nem notamos a força das nossas palavras. Ao chegarmos ao trabalho, por exemplo, o “bom- dia”, acompanhado da pergunta “tudo bem?”, é respondido quase sempre assim: “Tudo bem, graças a Deus.” E quando perguntamos ao colega se ele voltará no dia seguinte: “Até amanhã, se Deus quiser”, dáse a clássica resposta.
A influência do cristianismo em nossa cultura, desde o descobrimento do Brasil, em 1500, com a chegada dos portugueses jesuítas, tem papel de destaque ainda hoje, segundo dados do Censo de 2010 do IBGE.
Cristãos são 86,8% do total da população brasileira; 64,6% se dizem católicos e 22,2% evangélicos. Nessa legislatura, a Frente Parlamentar Evangélica é formada por 75 deputados e quatro senadores, mais de 10% do Congresso.
A Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Não se trata de ferir o conceito do Estado laico, mas nossa religiosidade não pode ser negada, por se tratar de uma manifestação cultural do povo brasileiro. Mais do que isso, é uma obrigação nossa defendê- la.
O parágrafo único do artigo 4 da Carta diz que o Brasil deve reger suas relações pelo princípio da integração cultural dos povos. Em outro trecho, no artigo 23, ela assegura a competência da União, estados e municípios na proteção e acesso aos meios de cultura.
Promover cultura sem atentar para a religião é um erro. O conceito de cultura não é — nem pode ser — excludente. Neste contexto, defendo que Bíblias — que difundem aspectos históricos, sociais e culturais — sejam disponibilizadas para consulta ao cidadão brasileiro. Retirá- las das bibliotecas vai contra o direito fundamental à cultura, garantido em nossa Constituição, assim como o ensino religioso nas escolas públicas, um dos assuntos na ordem do dia do Supremo Tribunal Federal ( STF).
A Corte realizará audiência pública com representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ( CNBB), da Federação Espírita Brasileira ( FEB), da Confederação Israelita do Brasil ( Conib), da Sociedade Budista do Brasil ( SBB) e de lideranças evangélicas.
A audiência foi convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação direta de inconstitucionalidade ( Adin), na qual a Procuradoria- Geral da República ( PGR) pede que o STF reconheça que o ensino religioso é de natureza não confessional, com a proibição de admissão de professores que atuem como “representantes de confissões religiosas”.
O ensino religioso já é previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e no acordo assinado entre o Brasil e o Vaticano.