O Estado de São Paulo, n. 44483, 02/08/2015. Economia, p. B6
Amir Khair
02 Agosto 2015 | 03h 00
A equipe econômica apostava num ajuste fiscal como ponto de partida para estimular os empresários a investir e daí viria o crescimento econômico. A fraqueza política do governo aliada a um Congresso e Judiciário gastadores frustrou a expectativa da equipe na aprovação do pacote de redução de despesas e elevação de tributos considerados necessários ao ajuste pretendido. De sobra o Congresso aprovou bombas que se não desarmadas explodiriam as despesas da Previdência Social. A presidente as vetou.
O que essa equipe não esperava foi a frustração de arrecadação devida à recessão em curso. Esse o golpe que fez reduzir o esforço fiscal de R$ 66,3 bilhões (1,1% do PIB) para R$ 8,7 bilhões (0,15% do PIB). Em artigo anterior (Recessão x Ajuste de 19 de julho) procurei mostrar que sem crescimento não há possibilidade de sucesso em qualquer tentativa de ajuste fiscal, pois a perda da receita supera em cerca de 2 a 3 pontos a queda do PIB devido ao aumento da inadimplência. Assim se a recessão for de 2% a queda de arrecadação será de 4% a 5%.
Mostrei ainda que o principal golpe contra o ajuste vem do Banco Central ao elevar seguidamente a Selic. Ocorreu um crescimento de R$ 106 bilhões (!) em juros no primeiro semestre deste ano em relação a igual período do ano passado. Essa perda fiscal supera com folga a piora ocorrida na reprogramação da meta de superávit primário de R$ 57,6 bilhões (66,3 menos 8,7).
Essa dicotomia entre Tesouro Nacional e BC não é enfrentada pela equipe econômica que vem apoiando as sucessivas elevações da Selic. Esse grave erro é que está explodindo a relação dívida bruta/PIB, que entre o início e o fim do ano passado passou de 53,3% para 58,9% e ao final de junho já pulava para 63,0%. Nessa toada de elevada Selic e recessão não será de admirar que fure o teto de 70% neste ou no máximo em 2016. Tudo isso é observado pelas agências de classificação de risco e o rebaixamento do País é iminente.
Há que observar o efeito devastador para o equilíbrio fiscal da despesa com juros. As análises têm passado ao largo dessa questão e só olham o que ocorre com o superávit primário que não considera juros na despesa.
O governo se encontra numa sinuca de bico. Manter a Selic em 14,25% até o final do ano é caminho certo para estourar a relação dívida/PIB e perder o grau de investimento com sérias consequências. Reduzir a Selic vai levar o BC a uma situação delicada, pois deveria ter parado de elevá-la a mais tempo. Além disso, será acusado pelo mercado financeiro, que lucra com a Selic alta, de ser leniente com a inflação.
O que fazer? Creio que sem políticas voltadas ao crescimento com níveis de taxas de juros caminhando para o que fazem a maioria das principais economias, o insucesso é certo. Há que reduzir rapidamente a relação dívida/PIB e duas ações se impõem: a) substituir a emissão de títulos por moeda (quantitative easing) como fazem os Estados Unidos, Europa e Japão entre outros e; b) vender US$ 100 bilhões das reservas atualmente em US$ 380 bilhões; isso faria uma redução de R$ 330 bilhões na dívida bruta, ou seja, 9,3%.
Essas reservas estão superestimadas; no auge da crise de 2008 estavam em US$ 200 bilhões. O custo anual de carregamento dessas reservas é dado pelo diferencial entre as taxas de juros Selic e de remuneração dos títulos do Tesouro americano de 12 pontos aplicado sobre o estoque de US$ 380 bilhões que dá US$ 46 bilhões ou R$ 150 bilhões!
A anomalia que caracteriza a macroeconomia do País é a taxa de juros. As economias avançadas têm a relação dívida/PIB acima de 100%, mas como praticam taxa básica de juros ao nível da inflação, a despesa com juros se situa normalmente abaixo de 2% do PIB, bem distante dos 7% a 8% que causam nosso rombo fiscal.
Estranhamente o debate econômico não foca os juros. É como se fosse sagrada a decisão do BC de operar com taxa Selic anormal. Esse o problema a ser enfrentado. Pode o BC gozar de plena liberdade e praticar a Selic que bem entender? Não creio. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi um marco nas finanças públicas estabelecendo princípios e regras que objetivam o equilíbrio fiscal (despesa igual a receita). Enquadrou todos os poderes da União, Estados, Municípios e o Ministério Público, mas infelizmente na fase de sua concepção não houve o enquadramento da responsabilidade fiscal para o BC. Assim, a despesa com juros suplantou sempre o resultado fiscal, impondo os déficits ocorridos.
O fato é que pela legislação compete exclusivamente ao BC o controle da inflação. Mas, se formos adentrar no miolo da inflação e decompor seu medidor oficial, o IPCA, vamos constatar que 80% da inflação não passa pela porta do BC. Vejamos.
A inflação de serviços é comandada pelo mercado de oferta e demanda, pois são milhões de ofertantes e de demandantes, se assemelhando a um mercado perfeito, havendo livre escolha para os consumidores de serviços. O legado do governo Lula ao acrescentar cerca de 40 milhões de novos consumidores na calasse C fez crescer a demanda em velocidade superior à oferta, mas aos poucos isso se ajusta com a entrada de novos ofertantes. Assim, o que regula a inflação de serviços é o mercado. Não é o governo, nem o BC. Só aí temos 35% do peso na composição do IPCA. Nos últimos quatro anos a inflação de serviços foi em média de 8,5% ao ano.
Outro componente do IPCA são os alimentos que respondem por 25% dos preços no IPCA e o que comanda os preços é o clima. Nos últimos quatro anos tivemos sempre problemas sérios de excesso de chuvas ou seca prolongada, fazendo com que a inflação média de alimentos atingisse 9,0% ao ano.
O terceiro componente do IPCA, com peso de 20%, são os preços administrados pelos governos federal, estadual e municipal, que não dependem do BC. Em resumo tem-se 80% da inflação que não depende do BC e atribuir a ele a responsabilidade exclusiva pela inflação faz com que ele use a Selic para influir nos 20% do IPCA que sobram, que são os bens sujeitos à concorrência externa. Para isso usa Selic elevada para atrair dólares especulativos que vem em procura de títulos do governo federal, que oferecem juros reais de 8,4% ao ano, sem risco e com liquidez imediata.
Não vejo outro caminho para voltar a crescer senão posicionar o mais rápido possível a Selic ao nível da inflação como fazem a maioria dos países que enfrentaram a crise externa. Com isso: a) avança-se rumo ao equilíbrio das contas públicas; b) posiciona-se o câmbio no lugar (ao redor de R$ 4,50/US$) permitindo o crescimento das exportações rumo ao equilíbrio externo e; c) abre-se a possibilidade de retomar o crescimento em bases sólidas diante de um quadro macroeconômico saudável. Felizmente esse caminho não passa pelo Congresso e depende só do governo. Há que trilhá-lo!