‘Assumi para evitar confusão’

 

Francisco de Souza conta a MARIANA SANCHES detalhes do caso em que é réu no STF e que poderá descriminalizar o porte de drogas. “Quer dizer que eu virei herói da história do baseado?”, surpreende-se Francisco Benedito de Souza, de 55 anos, que só descobriu depois de 20 minutos de conversa com a equipe de reportagem do GLOBO por que seu celular não parava de tocar e seu nome vinha sendo mencionado em diversos telejornais ultimamente. Souza está no centro da discussão que o Supremo Tribunal Federal (STF) fará nos próximos dias e que poderá descriminalizar o porte de drogas para usuários em todo o Brasil. Flagrado com três gramas de maconha em uma cela de um Centro de Detenção Provisória, onde passou parte dos dez anos em que esteve encarcerado por assalto à mão armada, receptação e contrabando, ele não foi avisado pelo defensor público de que seu caso fora parar no STF.

— Achei que eu ia ter que cumprir os dois meses de serviço comunitário aos quais a juíza havia me condenado — conta.

Segundo ele, a maconha era de uso coletivo dos 32 presos com quem dividia a cela e estava guardada em uma marmita que os agentes penitenciários encontraram durante uma blitz na cadeia.

— Usávamos à noite, para dormir. Mas para evitar qualquer confusão, assumi que era minha, para uso pessoal — alega Souza, que recebeu um castigo e por 30 dias ficou sem visita ou banho de sol. — Um exagero, parecia que tinham prendido o Marcola.

A punição foi além. Souza acabou condenado em primeira instância, em 2010. Em sua decisão, a juíza Patrícia de Toledo afirmou que “diante da personalidade do réu” e de suas reiteradas condenações, ele deveria sofrer uma punição. A pena se manteve em instâncias superiores até que o caso de Souza chegasse à Suprema Corte brasileira. Atualmente, no Brasil, o uso de drogas não é crime, mas o porte de entorpecentes é. Por isso, cabe ao juiz determinar caso a caso se o usuário pego com drogas pode ser liberado sem punição ou depois de uma advertência ou se cabe uma pena mais grave, como a prestação de serviços, ou mesmo penas por tráfico de drogas. A situação mudará caso o STF decida que, como argumenta o defensor de Souza, Leandro Castro Gomes, a condenação pelo porte de drogas para uso pessoal “ofende o princípio da intimidade e vida privada”, garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal. A defesa de Souza alega que “o porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’, mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”.

Se a tese da defesa for acatada, não apenas Souza estará livre de qualquer punição como outros presos por motivo semelhante poderão ter suas penas revistas. Países como Holanda e Espanha já adotam esse princípio de que existe uma quantidade de droga que o usuário pode portar sem receber sanção.

Solto desde janeiro deste ano, quando terminou de cumprir a última de suas penas, Souza temeu que ainda devesse algo à Justiça quando começou a ser procurado por repórteres. Ao todo, Souza foi preso cinco vezes. Pai de seis filhos, em sua última prisão, a filha caçula tinha apenas 1 ano. Quando foi solto, a menina já estava com 7.

Souza afirma que jamais pensou que “alguém pudesse se interessar por sua vida”, mas, ao mesmo tempo, diz que sua história “daria um livro”. Ele nasceu no sertão cearense de Cariús em 1962, mas só foi ter registro civil aos 17 anos. E aumentou a idade em dois anos para poder arrumar um emprego com carteira assinada antes da maioridade. O pai de Souza nunca o reconheceu como filho. Na infância, a escola deu lugar ao trabalho na roça de feijão e milho:

— A gente passava necessidade, né?! Minha mãe teve seis filhos, e os pais não ficavam para ajudar

Ao completar 18 anos, ele se mudou para São Paulo para viver com um irmão e tentar um trabalho. Chegou analfabeto. Completaria o ensino fundamental apenas na cadeia. Trabalhou como mecânico, chapeiro, vendedor, segurança, feirante.

— Consegui criar meus três primeiros filhos honestamente, mas, depois, entrei para o crime. Foi um caminho errado que eu tomei — admite.

Segundo ele, começou a trabalhar com compra e venda de carros e peças automotivas e conheceu quadrilhas de ladrões de carros. O lucro era alto, e ele passou a fazer negócio com material roubado, além de peças contrabandeadas. Mas em pouco tempo, em 1997, acabou preso. O uso da maconha, e também de cocaína e lança-perfume, vieram com a vida na cadeia.

— É uma coisa muito comum entre os presos. Se querem impedir que usem, tem que barrar a entrada, não é? E não punir quem usa — afirma Souza, argumentando que a maconha promovia certa tranquilidade no presídio.

Ele diz que o hábito de fumar maconha, no entanto, ficou no passado, junto com a rotina atrás das grades. Tem frequentado uma igreja evangélica, diz que não vê mais os antigos parceiros de crime e que pretende arrumar um emprego com carteira assinada — hoje, faz “bicos” como mecânico e pintor. Seu sonho é ter sua própria lanchonete. Mas se diz a favor da descriminalização do porte da droga mesmo assim:

— Eu acho que cada um decide o que é bom para si. E se a minha história puder ajudar outras pessoas, vou ficar feliz.