Por que prender Maria?

 

ILONA SZABÓ DE CARVALHO E ANA PAULA PELLEGRINO

O globo, n. 29956, 13//08/2015. Opinião, p. 17

 

Maria tem três filhos. Enquanto nina a mais nova, nascida atrás das grades, pensa nos outros dois. Maria está presa. Teve que escolher entre ter sua filha no chão da cela da cadeia mista ou ser transferida para uma prisão com maternidade em outro estado, uma das poucas do Brasil, longe de seus meninos.

“Não quero parir com os ratos,” disse à tia na última visita em que trouxe as crianças. Elas, arredias, ainda não a tinham perdoado por ter sumido um dia de casa. O Juizado de Menores só foi contatar a família dias depois da prisão. Os meninos tinham os olhos secos de tanto gastar lágrima chamando pela mãe quando a tia os encontrou.

Maria foi pega com 20g de maconha. Foi na segunda vez que agachou, nua, na frente da agente penitenciária. Fora escolhida para a revista vexatória na fila de visita. Nervosa e grávida, sentiu que não ia conseguir segurar. Ouviu o barulho do embrulho caindo no chão.

O companheiro pedira por recado que levasse drogas consigo na visita. Falou para colocar no ânus, para não machucar o bebê. Desde que fora preso, ele precisava de maconha como moeda de troca em sua penitenciária, dominada pelo PCC. “Ô minha nega, se você soubesse o inferno que é aqui dentro...”

Agora ela sabe. Mas ninguém parece saber dela. Maria aguarda julgamento, acusada de crime de tráfico, equiparado a hediondo. Fica pensando se será condenada.

Seu companheiro foi preso com um baseado de maconha. Apesar de ser réu primário, estar desarmado e repetir que a droga era para si mesmo; preto e pobre, não deu outra. “É traficante!” Palavra do policial contra a dele. Cinco anos nas masmorras medievais brasileiras. Mas a lei não garante que usuário não vai preso? Sim, mas ela não diz objetivamente quem é usuário e quem é traficante. Então o policial e o delegado decidem.

E Maria? Ela espera. Não tem como pagar advogado, está na fila de uma defensoria pública sobrecarregada e desvalorizada. Mas continua sonhando com a liberdade.

A verdade é que existem muitas Marias. Cerca de 62% das mulheres hoje presas no Brasil aguardam julgamento ou foram condenadas por tráfico de drogas. Levavam substâncias ilícitas para seus companheiros ou toparam ser mulas por alguns trocados, tentando de alguma maneira sustentar o lar. “É só uma vez.”

São vítimas da perversidade da atual legislação. Réus primários, presos com pequenas quantidades e sem fazer uso de nenhuma violência lotam as cadeias. O Brasil continua sendo um grande moinho de gastar gente, principalmente gente negra, agora movido pela Lei de Drogas. Mas se Maria não perde a esperança, também não podemos fazê- lo. A história de Maria poderia ter sido diferente se seu companheiro não tivesse sido enquadrado indevidamente como traficante. É mais simples do que parece. Bastaria tirar o usuário de drogas da esfera criminal e determinar critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes. Precisamos definir referências de quantidades de uso, como já fazem dezenas de países.

Hoje, o STF pode decidir que a criminalização do consumo de drogas é inconstitucional. Semana passada, especialistas se reuniram para organizar o conhecimento científico, clínico e social sobre padrões de uso de drogas no Brasil e redigiram um documento com tabelas de quantidades de drogas que servem de referência para identificar usuários.

Se adotarmos essa informação sobre padrão de uso de drogas como norte para distinguir usuários de traficantes, o baseado do companheiro de Maria não teria sido suficiente para prendê- lo. E ela não teria agachado. Livre, abraçaria seus meninos. E lhes apresentaria sua irmã, Maria.