Correio braziliense, n. 19069, 11/08/2015. Saúde, p. 16

 

Alívio que vem do canabidiol

Zulmira Furbino 

Composto presente na maconha é alvo de pesquisas e prescrito para o tratamento de doenças como convulsão e câncer. No Brasil, o uso da substância, que é importada, depende de autorização do governo.

 

Belo Horizonte — A maconha é milenar. Suas propriedades medicinais vêm sendo usadas há quase 5 mil anos, de uma forma que passava ao largo da ciência. Mas, com um entendimento maior sobre os efeitos do canabidiol no corpo humano, médicos, químicos e neurocientistas passaram a pesquisar a fundo o tema. Hoje, a ciência caminha a passos largos para confirmar as evidências dos benefícios gerados pelos principais compostos presentes na erva — o THC, que tem efeito psicoativo; e o CBD, que não tem.

O segundo mudou, há três meses, a rotina na casa de Maria Cristina Fleury Furtado de Campos. Ela é mãe de Maria Valentina e José Maurício. O menino de 2 anos e 9 meses tem a síndrome de West, uma forma devastadora de epilepsia em crianças. Em maio, ela convenceu o neurologista dele a testar o canabidiol (CBD). “Estamos administrando em doses mínimas, mas a resposta foi imediata. No segundo dia, notamos melhora na comunicação com o olhar”, comemora a publicitária.

Cristina conta que o nível de atenção do filho mudou, assim como a comunicação e a emissão de sons. “Alteraram-se por completo. Meu filho se tornou um menino risonho do novo. Está entendendo tudo o que se passa e as crises já começaram a diminuir. Ainda não chegamos ao controle total da epilepsia, mas há espaço de sobra para aumentar a dose porque estamos usando uma quantidade mínima”, comemora.

Os gêmeos nasceram prematuros, aos sete meses e meio de gestação. Mauricinho apresentou uma pequena dificuldade de respirar, condição natural em bebês que vêm antes da hora. Foi entubado em uma unidade de terapia intensiva (UTI). No segundo dia de vida, sofreu duas paradas cardiorrespiratórias que culminaram em uma paralisia cerebral por falta de oxigênio. Em seguida, começou a ter convulsões. O menino deixou o hospital tomando anticonvulsivantes e, mais tarde, foi diagnosticado com a síndrome.

Até os testes com o composto da maconha, para controlar as crises, a criança ingeriu medicamentos com fortes efeitos colaterais, como queda da imunidade e perda parcial ou total da visão. “Isso sem contar que um dos medicamentos o deixou dopado por completo e ele perdeu todos os ganhos duramente conquistados com a fisioterapia. Nessa fase, Mauricinho sequer levantava um braço para pegar alguma coisa”, relembra a mãe.

Acesso
Atualmente, a maconha é usada em vários países, principalmente para o alívio da dor e do sofrimento de pacientes com doenças crônicas, mas, no Brasil, o uso esbarra na falta de regulamentação do medicamento, o que dificulta, encarece e, muitas vezes, impede o tratamento. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) permite a importação de uma única substância derivada da erva — são mais de 80 no total —, com base em pedidos médicos.

O medicamento importado é vendido fora do Brasil como suplemento alimentar. A agência já recebeu 892 pedidos de autorização excepcional de importação de produtos à base de canabidiol, mas os pacientes se queixam das dificuldades de acesso e do alto preço do medicamento. O Conselho Federal de Medicina regulamentou, em 2014, o uso compassivo do canabidiol como terapêutica médica. O tratamento pode ser prescrito somente por neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras e deve ser usado exclusivamente para tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais.

É o que acontece com a psicóloga Loiva Maria de Boni Santos, 52 anos. Integrante do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça, e especialista em dependência química, ela vinha acompanhando as discussões sobre as diretrizes da política nacional de drogas e sobre a maconha medicinal quando, terminando um mestrado, descobriu que tinha câncer no peritônio em estágio quatro, derivado de um tumor no ovário.

Loiva foi submetida a uma cirurgia, quando os médicos detectaram que o câncer estava em estágio avançado. Ela foi encaminhada para a quimioterapia, mas, inicialmente, não cogitou usar a maconha para facilitar o tratamento. “Na época, já sabia dos efeitos benéficos da cannabis, porém, não tive coragem de usar, por questões morais”, reconhece.

Mais tarde, depois de uma recidiva, Loiva passou a usar a erva para amenizar os efeitos da quimioterapia e também como forma de “estacionar” o tumor. “Quando terminei a primeira químio, perguntei ao médico e ele disse que não poderia recomendar porque era ilegal, mas reconheceu os benefícios. Fiquei mais segura dividindo isso com ele. Já o oncologista que estava me receitando o medicamento para náuseas não proibiu, mas percebi que desaprovava”, lembra.

Para saber mais

Descoberta há 55 anos

A identificação e o isolamento dos compostos da maconha, que levaram à descoberta da existência de componentes como o tetrahidrocanabinol (THC), foram feitos na década de 1960 pelo médico búlgaro radicado em Israel Raphael Mechoulam. Professor da Escola de Medicina da Universidade Hebraica Hadassah, Mechoulam e o grupo liderado por ele identificaram os receptores de ligação dessas substâncias nas células nervosas humanas, consolidando, assim, o sistema endocanabinoide.

De lá para cá, esses receptores foram isolados em diversas células do sistema imunológico e de alguns tipos de câncer, o que abre um universo de aplicações no combate a tumores e a doenças degenerativas autoimunes. Pesquisas realizadas em diversas universidades ao redor do mundo, inclusive no Brasil, em nível experimental, testam a erva para o tratamento de diversos males: de autoimunes, como a esclerose múltipla e o lúpus, a degenerativos, como o Parkinson.

Conheça a maconha

A planta
A Cannabis sativa tem origem asiática e é usada há milhares de anos para a produção de fibras, alimento e remédios

Por que é medicinal?
Essas propriedades são fruto da interação de seus compostos, os canabinoides, com células do sistema nervoso e de diversos órgãos humanos. Eles repetem, em nosso corpo, a função de substâncias semelhantes produzidas pelo próprio organismo

Os canabinoides
Cientistas identificaram mais de 70 tipos. A quantidade e a proporção dessas substâncias em cada planta mudam segundo a variedade genética e as condições de cultivo. Os mais abundantes são o THC e o CBD

THC
Canabinoide mais comum na maioria das variedades de Cannabis, é responsável pelo efeito psicoativo da maconha e por seu potencial de causar dependência. Propriedades medicinais: analgésico, anti-inflamatório, antiespasmódico, estimulante do apetite e antienjoo

CBD
Muito estudado pelas propriedades terapêuticas, não tem efeito psicoativo nem causa dependência. Propriedades medicinais: anticonvulsivante, anti-inflamatório, antipsicótico, antioxidante, neuroprotetor e imunomodulador.

 
Rotina de convulsões e espasmos
Desde os 25 anos, Juliana Paolinelli, hoje com 36, sobreviveu a “grandes desastres”. O primeiro foi a segunda cirurgia na coluna lombar, que teve graves consequências neurológicas, resultando em síndrome da cauda equina, que causa dor. Depois, passou quatro anos com uma bomba de infusão de morfina implantada no abdômen e ligada ao sistema nervoso central, o que  a tornou dependente química.

 

Apesar de não haver relatos na literatura mundial de gravidez com bomba de morfina, Juliana engravidou enquanto o mecanismo estava implantado em seu corpo. Ao se recusar a fazer um aborto terapêutico, o médico especialista em dor a abandonou. Até o completo desmame da infusão de morfina, o que a livrou da dependência, a jovem enfrentou várias crises de abstinência.

A cirurgia para tratar um deslizamento da vértebra L5 sobre S1 resultou numa inflamação crônica, levando a uma meningite local. Por causa disso, ela tem inúmeras dificuldades no cotidiano. Entre elas, espasmos que fazem as pernas baterem, o que a obriga a amarrar os pés ou uma perna na outra.

Além disso, Juliana sofre com constantes convulsões abdominais, tem bexiga e intestino neurogênicos e dores insuportáveis a cada crise, que podem chegar a 12 convulsões ao dia. Nem mesmo o fato de ser submetida a tipos diversos de tratamento — usou todos os anticonvulsivantes e combinações de anticonvulsivantes — controlou o problema. Foi graças à Cannabis sativa (nome científico da maconha) que ela se livrou da morfina e hoje consegue suportar as dores angustiantes e convulsões cotidianas, que não acabaram, mas foram bastante reduzidas e estão mais suportáveis.

Ela precisa do composto da maconha para viver. O problema é que, quando o remédio acaba, não pode ir à farmácia para comprar outro. “Da mesma forma que uma pessoa pode consumir analgésico, acredito que tenho o direito de usar maconha para me medicar. Não quero continuar a viver de sobras, de restos, sem credibilidade no meu tratamento. Quero ser reconhecida como paciente de maconha medicinal. É o que sou. Somos muitos e estamos nos mobilizando”, diz. (ZF)