Correio braziliense, n. 19070, 12/08/2015. Saúde, p. 14

 

Maconha sob o olhar brasileiro

Zulmira Furbino 

Belo Horizonte A lista de enfermidades que podem ser tratadas com compostos da maconha é diversa: tumores, problemas neurológicos (dores neuropáticas, epilepsias e Parkinson, por exemplo), autoimunes (como artrite reumatoide, doença de Chron e lúpus), infecções e até vícios. Pesquisadores brasileiros trabalham para torná-la ainda mais variada. 

Um estudo no Laboratório de Biomembranas do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que componentes da erva podem ser usados para reduzir a hipertensão e recuperar o tecido renal. Isso porque eles agem no sistema de endocanabinoides, que, entre outras funções, controla a bomba de sódio e potássio do organismo, vinculada ao controle da pressão sanguínea. 

Os componentes da erva conseguem, de acordo com o estudo, aumentar ou reduzir a atividade da bomba. Descobrimos que a atuação de um canabinoide sintético em culturas de células dos rins é capaz de controlar a entrada e a saída de íons como o sódio, explica a pesquisadora Luzia Sampaio. Como os estudos com a Cannabis não são liberadas no Brasil, a saída foi desenvolver uma substância que imitasse os efeitos do tetrahidrocanabinol (THC) no organismo. 

A pesquisa da UFRJ ainda não foi testada em humanos, mas, segundo os cientistas, abre a possibilidade de novos caminhos na indústria de medicamentos, podendo chegar a ser uma alternativa para o tratamento de lesões renais, das simples às mais graves, reduzindo, assim, a demanda por transplantes do órgão. 

Psiquiatria 
Na Universidade de São Paulo (USP), o foco é em problemas psiquiátricos. Um grupo liderado por José Alexandre Crippa, da Faculdade de Ribeirão Preto, está na vanguarda mundial da pesquisa sobre o potencial uso terapêutico do canabidiol (CBD), conduzindo pesquisas voltadas para a doença de Parkinson, a esquizofrenia, a ansiedade, distúrbios do sono e dependência de drogas. 

Crippa, que é psiquiatra, neurocientista, pesquisador e professor da faculdade, lembra que um medicamento que combina o uso do CBD e do THC está disponível para o tratamento da esclerose múltipla no Canadá, na Espanha e no Reino Unido. Os compostos de canabinoides têm mostrado incrível potencial terapêutico e poderão ajudar milhões de pessoas no mundo todo, inclusive no Brasil, sustenta. O especialista ressalta que a ampliação dos ensaios clínicos avaliando a segurança e a faixa de dose é essencial. 

No caso de Benício, 7 anos, o aumento das doses de CBD acompanha a redução de medicamentos anticonvulsionantes. O menino tem síndrome de Dravet, forma severa de epilepsia na qual a maioria dos pacientes não passa da primeira infância. O tratamento com o composto da maconha acontece há dois anos e é acompanhado por um neurologista. 

Ramires, pai de Benício, conta que o menino já foi internado 48 vezes, 14 delas na unidade de terapia intensiva (UTI), e chegou a receber a extrema-unção. O tratamento com CBD transformou a condição de epilético incontrolável para controlado, saindo de cinco a seis crises diárias intensas para períodos de até 30 dias sem nenhuma. 

Fim da apatia 
Efeito parecido tem sido comemorado por Wesllem Bacelar, pai de Alice Bacelar, 1 ano e 11 meses. A menina nasceu prematura, com 29 semanas. Aos 2 meses, sofreu uma parada cardiorrespiratória e teve lesão cerebral causada por falta de oxigenação no cérebro, o que desencadeou a síndrome de West. Na tentativa de controlar as crises, usamos diversas medicações, sendo que duas foram interrompidas em função dos efeitos colaterais, conta o pai. 

Alice começou a perder a visão periférica e a apresentar problemas para dormir e alterações no humor. Ela chorava horas sem parar. Era apática, vivia sonolenta e interagia muito pouco. Todos os neuropediatras com os quais conversamos diziam que o canabidiol era uma possibilidade, mas nenhum assumia a responsabilidade de receitá-lo, lembra o professor de 42 anos. 

Wellem conta que uma amiga foi para os Estados Unidos e trouxe o canabidiol ilegalmente para eles. Com orientação de um médico da Associação dos Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+me) e de um novo neuropediatra, Alice passou a usar o composto. Em um mês, o eletroencefalograma melhorou e a capacidade cognitiva dela avançou muito. Hoje, reconhece objetos, se comunica com linguagem não verbal, vocaliza para avisar que acordou, mostra que está com sede, com fome e acompanha os objetos, lista. 

Antes do canabidiol, Alice tinha 15 espasmos por dia. Hoje, são dois ou três. A desculpa dos médicos para não recomendar o uso é que não se sabe quais são os efeitos colaterais, mas o medicamento tradicional que vinha sendo usado estava deixando minha filha cega, diz o professor. 


Eficácia 

Dores crônicas 
Revisão de 15 estudos sobre o uso da maconha e derivados no controle de dores crônicas mostra que ela é eficaz e produz poucos efeitos colaterais adversos. Há benefícios para pacientes com fibromialgia, artrite reumatoide, dores neuropáticas, que produzem dores que não podem ser aliviadas por nenhuma medicação disponível em farmácias e, às vezes, nem por morfina. Em 2014, 80% dos pacientes do programa federal de Cannabis medicinal da Holanda afirmaram que a terapia funciona, 53% deles com dores crônicas. 

Quimioterapia 
Usada para o controle de tumores, produz náuseas e vômitos em muitos pacientes, que perdem o apetite e passam a se alimentar mal, o que compromete a saúde real. O THC presente na maconha é antiemético (inibe enjoo e vômitos). A Cannabis ainda aumenta o apetite e combate a insônia. Medicamentos com THC ou similares são indicados para pacientes com câncer pela Rede Nacional de Câncer, composta pelas instituições de pesquisa oncológica mais importantes dos Estados Unidos.

 


Esclerose múltipla
É uma doença degenerativa do sistema nervoso que causa dores crônicas, espasmos musculares e perda progressiva dos movimentos, da memória e da sensibilidade. Desde os anos 1990, estudos indicam que o uso da Cannabis in natura diminuiu diversos sintomas da doença, principalmente os espasmos musculares e as dores. Pesquisas clínicas mais recentes confirmam a eficácia do medicamento Sativex, extrato natural de maconha, no controle da doença.

Epilepsia
O uso de maconha para o tratamento da epilepsia é conhecido há pelo menos 500 anos, mas ganhou maior relevância nos últimos anos, com a repercussão de casos de crianças que conseguiram controlar as dezenas ou centenas de convulsões que sofriam por dia. Um grande estudo clínico para testar a eficácia do canabidiol no controle de epilepsias raras e sem cura está em curso nos Estados Unidos. Em Israel, o programa de maconha medicinal do governo autoriza o uso da substância em crianças que não respondem a outros tratamentos.