O fim do deixa- disso tributário

 

JOSÉ PAULO KUPFER 

O globo, n. 29950, 07//08/2015. Opinião, p. 19

 

Oempenho em resolver impasses na base do jeitinho, do empurrar com a barriga e do deixa- disso são marcas antigas e ainda não inteiramente dissipadas do caráter nacional. A indexação da economia, que, na origem, em meados dos anos 60, era conhecida como “correção monetária”, é um exemplo excelente — e talvez insuspeito — dessa inclinação. Invenção brasileiríssima para acomodar conflitos distributivos provocados pela inflação, a correção monetária terminou se transformando em dramático obstáculo ao desenvolvimento econômico e fonte de instabilidade política.

Não é diferente o que ocorre quando se observam as contas públicas. Depois da Constituição de 1988 e com intensidade inédita a partir de 2003, as despesas públicas ganharam dinâmica insustentável, como está agora mais do que evidente, diante da insuficiência de receitas, apesar da carga tributária muito elevada. A explosão dos gastos sociais explica a aceleração da despesa e a regressividade do sistema tributário nacional, que taxa mais quem pode menos, é a causa de base das distorções que tornam a arrecadação ultravulnerável ao nível de crescimento da economia e incapaz de bancar os programas distributivos ao longo do tempo.

Tem- se aqui mais um experimento bem brasileiro, na tentativa de acomodar disputas distributivas. O governo, que dá com uma das mãos aos mais pobres, acelerando a despesa pública além do limite possível, retira com a outra mão parte do que transfere, ao deixar de tributar devidamente os mais ricos.

Não é, certamente, neste momento, que o problema de fundo poderá ser atacado. A crescente instabilidade política e a acelerada fragilização do governo Dilma impedem o rearranjo estrutural das contas públicas. Mas, como no caso da correção monetária, eliminada em boa parte com o Plano Real, 30 anos depois de criada, mais cedo ou mais tarde as distorções orçamentárias e tributárias terão de ser enfrentadas em sua estrutura. Na hora em que se revela o esgotamento das políticas distributivas pela via do aumento dos gastos públicos, reformar o perfil da carga tributária passa a ser também uma etapa necessária de todo o processo de ajuste estrutural das contas públicas.

É lugar- comum comparar a carga tributária brasileira, de 35% a 40% do PIB, conforme o cálculo, com a de outras economias de renda semelhante, quando muito em torno de 30% do PIB e é sempre lembrado que o tamanho da carga brasileira rivaliza com a de países mais ricos. Muito menos comum, porém, é a comparação da estrutura tributária brasileira com a de outras economias. Enquanto na média dos países ricos da OCDE, rendas e lucros respondem por cerca de 15% do PIB, mais do que o dobro da contribuição desse grupo para a carga brasileira, a participação da taxação de bens e serviços, que aqui chega a 20% do PIB e metade da carga, lá não passa de 12% do PIB e 20% da carga.

No primeiro levantamento sobre a estratificação de classes no Brasil — a partir de informações mais detalhadas do Imposto Renda até 2013, recentemente tornadas disponíveis pela Receita Federal —, publicado semana passada no jornal “Valor”, os economistas Sergio Gobetti e Rodrigo Orair, pesquisadores do Ipea, encontraram exatos 71.440 super- ricos, com rendimentos acima de 160 salários- mínimos mensais ( cerca de R$ 110 mil, na época). Os integrantes do topo da pirâmide representam 0,05% da população ativa, concentravam 14% da renda total e 22% de toda a riqueza nacional em bens e ativos financeiros. Enquanto 66% de sua renda ficavam isenta de IR, a parcela isenta dos contribuintes com renda até cinco mínimos mal chegava a 10%.

Essa chocante constatação não deixa dúvidas de que existe enorme potencial de crescimento de receitas públicas, sem afetar a competitividade econômica e melhorando as condições para a aplicação de políticas distributivas.