Só uma política social

 

RUBEN BERTA

CÁSSIA ALMEIDA

O globo, n. 30002, 28//09/2015. Economia, p. 19

 

A assistência social no Brasil é feita com distribuição de dinheiro. Levantamento feito pelo GLOBO, com base em relatório no Ministério do Planejamento, mostra que, no ano passado, o Bolsa Família concentrou 86,1% dos R$ 30,7 bilhões do Programa Brasil Sem Miséria. Esse plano, lançado em 2011, tem três eixos: garantia de renda, acesso a serviços e inclusão produtiva. Especialistas afirmam que o Brasil conseguiu grau de excelência nas transferências, mas os programas de geração de renda ainda patinam e recebem apenas 13,1% do orçamento do programa e não se consegue executálos plenamente.

MÔNICA IMBUZEIROÀ espera. Cátia de Paula e o filho Eric: eles recebiam Bolsa Familia até abril do ano passado. Cátia fez o recadastramento e espera voltar a receber o benefício que era usado no material escolar

— Temos tecnologia para transferir dinheiro para as pessoas, de forma barata e bem. Nos programas de inclusão produtiva, os problemas começam a se amontoar. Ninguém sabe se eles funcionam, em quais circunstâncias funcionam. Não há grupo de controle, de avaliação adequado e é assim há quatro décadas — afirma o economista Sergei Soares, especialista em pobreza e desigualdade e ex- presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( Ipea).

O censo da assistência social de 2014 mostra também a concentração de recursos na distribuição de dinheiro: 80,8% do orçamento são destinados ao pagamento do Benefício de Prestação Continuada ( BPC) e do Bolsa Família. O primeiro atende a 4,130 milhões de idosos e deficientes, com um salário mínimo mensal. O segundo chega a 14 milhões de famílias, com benefício médio de R$ 190 mensais.

Nos programas que deveriam dar acesso a serviços públicos e desenvolver a inclusão produtiva, a execução orçamentária é pífia. Um exemplo é o Ministério do Trabalho, responsável por projetos de economia solidária. Dos R$ 124 milhões previstos para a pasta no ano passado, apenas 18,7% ( R$ 23,2 milhões) foram efetivamente usados. Somente os recursos para o Bolsa Família e de educação infantil foram totalmente usados e até superados.

O Ministério do Trabalho admitiu, em nota, que “conveniadas não cumpriram os cronogramas apresentados e, por esse motivo, ficaram contas pendentes para serem pagas como restos em 2015, o que não afetou a continuidade e fechamento das metas a serem cumpridas em seus convênios”. Os valores pendentes passam de R$ 100 milhões. A pasta alegou que considera os valores empenhados ( quando há uma reserva financeira para o serviço) o que elevaria para 98,4% a parcela executada.

MINISTÉRIO DIZ QUE METAS FORAM CUMPRIDAS

O Ministério do Desenvolvimento Social, que administra a política de assistência social no Brasil, diz que independentemente de quanto foi gasto, as metas foram alcançadas, como a do Pronatec ( Programa Nacional de Ensino Técnico e Emprego) do Brasil Sem Miséria, que atendeu a 1,73 milhão de alunos em 2014 ( objetivo era um milhão) e o do programa de assistência técnica no campo, com 358 mil famílias atendidas ( meta era 253 mil).

Dados do Ministério do Planejamento revelam que, de todos os projetos de seis pastas envolvidas no Brasil sem Miséria, apenas o Bolsa Família e a educação infantil conseguiram cumprir o orçamento e até superá- lo. Considerando os recursos liquidados ( que comprovam que o serviço foi prestado), o programa de transferência teve execução de 104% ( R$ 26,5 bilhões). Já para a educação infantil, foram desembolsados R$ 808 milhões ( 120%).

Cátia Almeida de Paula tem dois filhos: Erick, de 14 anos, e Maria Eduarda, de 12. Trabalha como assistente em uma creche na Zona Sul, ganhando um salário mínimo. Recebia Bolsa Família e Bolsa Carioca desde 2006 até abril do ano passado. A falta do cadastramento fez Cátia perder os R$ 200:

— Usava para o material escolar das crianças. Já fiz o recadastramento e estou esperando.

Cátia é de Nova Iguaçu, filha mais velha, parou de estudar aos 13 anos para ajudar a mãe a cuidar dos quatro irmãos e a fazer trabalhos domésticos para contribuir nas despesas. As três irmãs de Cátia também recebem Bolsa Família assim como a mãe, viúva que recebe R$ 77, por não ter qualquer renda:

— Parei de estudar na quarta série. Tive que ajudar minha mãe, meu pai estava desempregado. Com 29 anos, voltei a estudar e consegui terminar o fundamental, mas parei no primeiro ano do ensino médio. Não deu para trabalhar e estudar.

Não é só no Ministério do Trabalho que a execução dos programas de inclusão produtiva ficam pelo caminho. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, que cuida de projetos de agricultura familiar, conseguiu liquidar apenas 18% dos R$ 369,6 milhões previstos para o ano passado. A pasta informa, porém, que superou todas as suas metas no programa. Já a Integração Nacional, que liquidou R$ 23,6% dos R$ 1,5 bilhão previstos, discordou dos números do Planejamento. “A pesquisa reflete apenas a execução financeira das despesas do exercício, sem considerar o desembolso de restos a pagar, o que elevaria os gastos para R$ 897 milhões ou 70% da dotação inicial”. O ministério também diz ter cumprido metas de acesso à água no semiárido.

— Esses programas demandam articulação entre entes federativos. Muitos municípios têm pouca capacidade administrativa. É difícil atender os requisitos — afirma o sociólogo Rafael Osório, do Ipea. Sergei Soares, do Ipea, completa: — O estado brasileiro tem um nível de ineficiência astronômico, muito, muito grande.

O Ministério do Meio Ambiente teve um bom percentual ( 78,9%) de execução exatamente no seu programa de transferência de renda, o Bolsa Verde, que dá R$ 300 a cada trimestre para famílias em extrema pobreza que vivem em áreas de conservação ambiental. O mesmo não ocorreu para o projeto de dessalinização de água: só liquidou R$ 3,6 mil ( menos de 0,1%).

A pasta destacou que o Programa Água Para Todos está em pleno andamento e já foram contratadas 650 obras. O ministério disse que empenhou mais de R$ 80 milhões previstos em 2014, mas admitiu que efetivamente não houve execução. “Diante disso, como ainda há recursos de 2014, optouse pelo contingenciamento da rubrica em 2015”.

POUCO ESPAÇO PARA CORTES

É possível fazer cortes no gasto social? Especialistas respondem que há pouco espaço e alguns dizem que é preciso aumentar os recursos. É possível até tornar o gasto mais inteligente, desvincular o reajuste do benefício de prestação continuada do salário mínimo ou fixar o piso do benefício em um percentual do mínimo. Mas pode haver efeito colateral.

— Pode- se desvincular o reajuste do benefício do salário mínimo, tanto no BPC quanto na Previdência Social, mantendo a reposição da inflação. Isso é uma jabuticaba. Não contribuir e receber igual a quem contribuiu. Mas há efeito colateral, a Previdência, que já é desigual, ficaria ainda mais — afirma Sonia Rocha, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade ( Iets).

O ajuste fiscal já atingiu programas sociais: as regras para o seguro- desemprego ficaram mais rígidas quando o desemprego já chega a 7,6% nas grandes metrópoles. O ano passado estava em 5%.

— É preciso conhecer melhor as carências para ter um gasto mais inteligente. O que temos que perceber é que as transferências são um investimento social — disse o presidente do Ipea, Jessé de Souza.

Sonia Rocha, do Iets, diz que o Benefício de Prestação Continuada tem que ser integrado ao Bolsa Família para sofrer mais controles.

— Desde 2005, o governo tem como meta unir os cadastros. No Bolsa Família há o recadastramento a cada dois anos. No BPC, entrou não sai mais.

Osório, do Ipea, lembra que o BPC funciona como aposentadoria para trabalhadores que passaram a maior parte da vida ativa na informalidade:

— Para essas pessoas, há idade mínima para se aposentar, 65 anos. Na Previdência oficial, não.

Sobre os gastos sociais, o professor da UFRJ João Saboia não vê espaço para cortes:

— Não é o momento ideal cortar gastos quando a economia está afundando e o mercado de trabalho, piorando.