Título: A farra das emendas
Autor: Mello, Alessandra ; Maciel, Alice
Fonte: Correio Braziliense, 18/09/2011, Política, p. 6/7

forasteiras Prática de destinar verbas a estados distantes das bases eleitorais camufla fraudes e beneficia aliados.

O que faz um deputado de Rondônia destinar meio milhão de reais para a promoção de turismo em municípios distantes 3 mil quilômetros da base eleitoral? No Orçamento de 2010, emendas no valor total de R$ 136,3 milhões foram enviadas por deputados e senadores para estados onde nem sequer receberam um voto. Boa parte desse dinheiro vai parar nos cofres de organizações não governamentais (ONGs). Muitas já denunciadas e investigadas por fraudes.

No lugar de obras e serviços para os eleitores, essas emendas servem para engordar contas de fundações de partidos ou de militantes políticos, patrocinar campanhas eleitorais, rechear cofres de ONGs de fachada e financiar projetos, pesquisas e eventos de entidades empresariais e de classe. O expediente dos políticos de mandar emendas do orçamento para ONGs e prefeituras de estados distantes da base eleitoral, em muitos casos, camufla a aplicação do dinheiro, dificulta o rastreamento e transforma esses recursos em financiadores dos mais diversos interesses privados. É o que revela um levantamento feito pelo Correio/Estado de Minas com base na Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano passado.

A farra com o dinheiro público envolve pelo menos 74 dos 513 deputados que tiveram assento na Câmara em 2010. Muitos conseguiram se reeleger. No total, eles enviaram 165 emendas para estados diferentes do local em que estão as respectivas bases eleitorais. O levantamento aponta ainda que o Distrito Federal e o Entorno funcionam como um verdadeiro celeiro de ONGs que têm a preferência dos políticos. A posição estratégica da capital do país atrai investidores e entidades, especialmente pela proximidade com o patrocinador ¿ o Congresso ¿ e os financiadores ¿ os ministérios, como os do Turismo, do Trabalho e da Ciência e Tecnologia.

"A execução do orçamento é aqui, a análise dos projetos nos ministérios também. Você tem que vender seus projetos na Câmara, para os deputados. Para quem quer atuar nesse setor de emendas, Brasília é o melhor lugar. É onde as coisas acontecem", afirma Carlos Alberto Koch, ex-dirigente do Instituto Nacional de Excelências de Políticas Públicas (Inepp), hoje à frente da empresa de Transportes Coletivos de Brasília (TCB). O Inepp recebeu recursos do deputado federal Eduardo Gomes (PSDB-TO), primeiro-secretário da Câmara, e foi destinatário de emendas do Ceará e de Pernambuco.

Trinta entidades com sede na capital federal foram beneficiadas por emendas de parlamentares de todo o Brasil. Três foram responsáveis pelos maiores repasses originários de outros estados: o Instituto Brasileiro de Hospedagem (IBH), do ex-diretor da Brasiliatur Cezar Augusto Gonçalves; o Instituto de Pesquisa e Ação Modular (Ipam), da ex-assessora da ex-senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) Liane Muhlenberg; e o Instituto Educar e Crescer (IEC), que estava registrado em nome de laranjas.

Todas as entidades já foram investigadas por suspeitas de fraudes na aplicação dos valores, o que demonstra que os parlamentares não se intimidam com as apuração da Controladoria-Geral da União (CGU) e insistem em beneficiar ONGs problemáticas, como ocorre com o IEC, beneficiado no ano passado por pelo menos seis políticos: o instituto engordou os cofres com mais de R$ 3 milhões.

Sem constrangimento Se o financiamento público de campanha ainda é uma discussão da reforma política, na prática o expediente já vem sendo usado pelos parlamentares por meio de emendas. A LOA de 2010 revela que os deputados também não se constrangem em destinar dinheiro público para ONGs de militantes de suas legendas ou ligadas diretamente ao partido. Comandada por dirigentes do PCdoB de São Paulo, a Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), na capital paulista, recebeu verba da então deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM). Já o deputado Lindomar Garçon (PV-RO), eleito para o segundo mandato, destinou uma emenda de R$ 500 mil para alavancar o turismo de Minas Gerais, e não em Rondônia. Segundo a assessoria do parlamentar, a destinação para Minas foi um "erro de digitação".

Disposto a mudar sua base eleitoral de estado, Bispo Gê Tenuta (DEM-SP) destinou todos os recursos de suas emendas parlamentares para a promoção da saúde, do turismo e da educação em municípios baianos, para onde transferiu seu título de eleitor. A estratégia, no entanto, fracassou. Nas eleições de 2010, ele disputou pela Bahia, mas não se reelegeu deputado.

Negócios familiares Para não deixar rastro dos verdadeiros beneficiados, os recursos públicos percorrem caminhos tortuosos, passando por uma triangulação que envolve empresas de fachada, assessores políticos e funcionários comissionados. Algumas vezes, até mesmo parentes em primeiro grau dos parlamentares, como do próprio Eduardo Gomes. Ele destinou R$ 300 mil para a ONG Muito Especial, com sede no Rio de Janeiro, cujo responsável é sócio da filha do parlamentar tucano em outro empreendimento. Já a entidade Ação Social Luz da Manhã, também do Rio, foi a escolhida para receber R$ 150 mil de uma emenda do deputado mineiro Júlio Delgado (PSB) ¿ a sede da entidade é registrada em um apartamento no qual nenhum morador conhece a ONG.

VERBAS SUSPEITAS DO PRIMEIRO-SECRETÁRIO A ONG Muito Especial, beneficiada por emenda de R$ 300 mil de Eduardo Gomes (PSDB-TO) em 2010, faz parte de uma teia de negócios do empresário Marcus Scarpa, sócio da filha do deputado em uma agência de publicidade. A sede da agência está registrada no mesmo endereço onde existem outras empresas de Scarpa. O local é uma sala, sem placa de identificação, em um prédio do Rio. A ONG já recebeu dos cofres públicos recursos milionários.

À reportagem, o empresário disse que foi sócio da filha de Gomes, mas hoje ela não faz mais parte da agência. Segundo Scarpa, ele e o deputado são amigos desde 2009, quando o parlamentar conheceu o trabalho da Muito Especial. Ele disse ainda que a ONG capacita deficientes físicos em Pernambuco, na Paraíba e em Tocantins. Procurado pelo Correio, Gomes afirmou que não foram identificadas irregularidades na prestação de contas do convênio que ele intermediou por meio de emenda entre a ONG e o poder público.