‘Um dano à Humanidade’

 

RENATO GRANDELLE

 

Às vésperas de completar 70 anos, a ONU começou sua Assembleia Geral com um personagem novo e afiado. Um dia depois de tocar em feridas americanas no Capitólio, como a pena de morte e as comunidades imigrantes, o Papa Francisco subiu pela primeira vez, ontem, no plenário das Nações Unidas e criticou a exploração dos recursos naturais do planeta, o que, segundo destacou, gera pobreza e desigualdade.

AFPRecepção. Multidão no Central Park, no coração de Nova York, festeja passagem do Pontífice

Primeiro Papa a dedicar uma encíclica à ecologia, em junho deste ano, Francisco ressaltou que “qualquer dano ao meio ambiente é um dano à Humanidade”. Segundo ele, o abuso e a destruição dos recursos naturais contribuem para um “processo ininterrupto de exclusão”.

— Os mais pobres são aqueles que mais sofrem os ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente — condenou. — Estes fenômenos constituem, hoje, a “cultura do descarte”, tão difundida e inconscientemente consolidada.

O discurso de Francisco abriu a Assembleia Geral da ONU que, até amanhã, discute 17 metas globais que devem ser cumpridas nos próximos 15 anos, como a erradicação da pobreza e da fome, o combate às mudanças climáticas, a defesa da igualdade de gênero e a universalização da educação. Estima-se que estes compromissos voluntários, assumidos por mais de 150 chefes de Estado, custarão entre US$ 3,5 trilhões e US$ 5 trilhões por ano até 2030.

— A adoção da agenda para o desenvolvimento sustentável é um sinal importante de esperança — avaliou o Papa. — Também confio que a Conferência do Clima (COP-21) em Paris, sobre as mudanças climáticas, alcance acordos fundamentais e efetivos.

NOVA COMPREENSÃO DE ECOLOGIA

Professor do Departamento de Relações Internacionais da UnB e autor do livro “Francisco: pão e água”, Argemiro Procópio avalia que o discurso verde do Vaticano constrange a inércia dos chefes de Estado:

— Ele teve a audácia de demonstrar que muitas iniciativas favoráveis ao meio ambiente têm sido mais intenção do que prática. É uma tapa de luva nos governantes, porque a maioria dos projetos ainda é muito contida.

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUCRio, acredita que Francisco amadureceu na ONU o debate sobre a preservação dos recursos naturais, já ensaiado pela Igreja desde o papado de João Paulo II e sublinhado na mais recente encíclica da Santa Sé, a primeira dedicada exclusivamente à ecologia.

— O Papa conecta o discurso sobre o meio ambiente com outro relacionado aos pobres, deixa de lado a noção de que ecologia é só tratar de mico-leão-dourado — assinala. — Sua percepção é de que há uma ligação entre a justiça ambiental e a social. Por isso critica incessantemente a idolatria ao dinheiro, já que os pobres serão os primeiros a ficar sem recursos fundamentais, como água limpa.

Há, porém, um longo caminho entre o puxão de orelhas papal na ONU e as negociações da Cúpula do Clima em dezembro, na capital francesa.

Diretor do Programa de Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Osvaldo Stella reconhece que o discurso de Francisco, embora popular, pode não ecoar no plenário em que será debatido o corte de gases de efeito estufa.

— O Papa conquistou uma grande influência política, mas isso não significa necessariamente sucesso em Paris — pondera. — No entanto, se uma pessoa de sua posição carrega a bandeira do clima de uma forma tão enfática, então podemos conseguir um acordo climático robusto.

Para Adriano Campolina, diretor da ActionAid, o apelo na ONU pode diminuir a lacuna entre ricos e pobres, além de mirar nos efeitos do aquecimento global:

— A solidariedade demonstrada pelo Papa é o começo da jornada para resolver alguns dos problemas mais difíceis do nosso tempo.

Na plateia da Assembleia durante o discurso, a presidente Dilma Rousseff elogiou as palavras do Pontífice.

— Me impressionaram suas convicções e compreensão, além da lucidez sobre os problemas do mundo e como enfrentá-los — disse ela.

 

 

Com agenda intensa, Pontífice atraiu multidões às ruas

 

 

Em sua primeira viagem a Nova York, o Papa cumpriu um roteiro intenso, típico de turista. Depois de seu discurso na ONU, Francisco, embarcado no papamóvel, foi ao Memorial do 11 de Setembro, visitou uma escola no East Harlem, percorreu o Central Park e fez uma missa no Madison Square Guarden.

Depois das Nações Unidas, o Papa visitou um dos mais novos ícones da cidade. No Memorial do 11 de Setembro, construído no local das ruínas das Torres Gêmeas, Francisco homenageou os três mil mortos durante o ataque terrorista de 2001 com uma oração em silêncio. O gesto foi seguido por líderes de outras religiões.

O compromisso solene foi sucedido à tarde por outro mais descontraído, com o cenário e suas companhias preferidas — uma escola de alunos carentes. No bairro do East Harlem, de grande população latina, visitou o colégio Nossa Senhora Rainha dos Anjos, ganhou presentes das crianças das escolas da Arquidiocese de Nova York e lembrou Martin Luther King:

— Ele disse um dia: “Eu tenho um sonho”. Ele sonhou que muitas crianças, muitas pessoas, podiam ter igualdade de oportunidades. Ele sonhou que muitas crianças, como vocês, teriam acesso à educação. É lindo ter sonhos e poder lutar por eles — disse o Pontífice aos alunos, para depois passar um dever de casa: — É um pedido fácil, mas muito importante: não se esqueçam de rezar por mim.

ANONIMATO NAS CIDADES

Mais tarde, cerca de 90 mil pessoas acompanharam a travessia do papamóvel pelo Central Park até o Madison Square Guarden, onde celebrou uma missa para 18 mil fiéis. Ele desafiou os moradores dos grandes centros urbanos a cuidarem da população marginalizada, que vive em um “anonimato ensurdecedor” em meio à riqueza e à agitação da metrópole:

— Deus está vivendo em nossas cidades. A Igreja está vivendo em nossas cidades, e elas são um lembrete das riquezas presentes e escondidas em nosso mundo — contou. — Na diversidade de suas culturas, tradições e experiências históricas, na variedade de suas línguas, costumes e culinária, as grandes cidades reúnem todas as maneiras diferentes que nós, seres humanos, descobrimos para expressar o sentido da vida, onde quer que estejamos.

Hoje, a maratona continua na Filadélfia, com direito a missa e visita a um festival de famílias.

 

O ‘ roqueiro’ de Cristo

 

O Papa Francisco divulgou ontem a primeira faixa de seu álbum de rock. Sim, o Pontífice, cuja popularidade anda nas alturas, também vai cravar os pés no universo musical. O álbum “Wake Up!” terá 11 faixas, compostas por vários artistas, de rock a cantos gregorianos.

O álbum tem lançamento previsto para 27 de novembro, e pré-vendas já abertas pelo iTunes. O diretor artístico Giulio Neroni é produtor do álbum e falou sobre o trabalho à revista “Rolling Stone".

— Tentei mantê-lo fiel à personalidade de Francisco: o Papa do diálogo, das portas abertas. Por esse motivo, a voz dele em “Wake Up!” dialoga com a música contemporânea e com a tradição cristã dos hinos sagrados — disse ele, que já produziu trabalhos de João Paulo II e Bento XVI .

Em “Wake Up! Go! Go! Forward!”, primeira canção divulgada do álbum, Francisco declama parte do discurso feito na Coreia do Sul no ano passado, acompanhado por acordes de guitarra, com elementos do rock progressivo da década de 1970.