Lei seca nas campanhas

 

FÁBIO VASCONCELLOS

 

Levantamento mostra que, em 2012, principais siglas receberam mais de 90% da iniciativa privada

A proibição de doações de empresas a candidatos desafia as campanhas para as eleições municipais do ano que vem. Levantamento do GLOBO das contas da disputa de 2012 mostra que os eleitos nas capitais foram financiados quase que exclusivamente por contribuições privadas. Dos recursos com origem nos diretórios nacionais dos principais partidos, mais de 90% saíram de empresas, revelam FABIO VASCONCELLOS E BRUNO GÓES. Com a proibição, o Brasil integrará um grupo minoritário de 28 países. A eleição presidencial de 1989, sem esse tipo de doação, foi marcada pela descoberta do caixa dois da campanha de Fernando Collor de Mello. Para fazer campanha eleitoral é preciso uma grande soma em dinheiro e, no caso do Brasil, de empresários. A um ano da disputa nos mais de cinco mil municípios do país, as novas regras de financiamento, se mantidas, acabam com as doações de pessoas jurídicas e impõem um novo desafio aos candidatos. Embora nas prestações de contas ao TSE eles declarem receber mais recursos via comitês e partidos, um mapeamento demonstra que as empresas são, no fundo, a principal fonte indireta de financiamento das disputas pelas prefeituras. No caso dos três principais partidos (PT, PMDB e PSDB), mais de 90% dos recursos vieram de empresas.

Levantamento do Núcleo de Dados do GLOBO, a partir das contas dos 26 prefeitos eleitos nas capitais em 2012,mostra que eles receberam 73% de recursos via comitês e direção partidária. Por esses números, os empresários teriam um peso aparentemente limitado no financiamento das campanhas. Mas há outro caminho por onde o dinheiro chega.

A campanha do então candidato Eduardo Paes (PMDB), atual prefeito, para a prefeitura do Rio, por exemplo, recebeu a maior parte das doações pelo comitê de campanha. Este foi bancado por empresas (27%) e o comando nacional do partido (72%). O PMDB, por sua vez, recebeu 96% de recursos de pessoas jurídicas. O modelo se repetiu na campanha do então candidato a prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), assim como na de Arthur Virgílio (PSDB), eleito prefeito de Manaus.

CAMPANHAS MAIS BARATAS

Embora o Supremo Tribunal Federal ( STF) tenha proibido as doações de empresas, alguns cientistas políticos creem que o debate não terminou. Outros consideram que, se mantida a decisão, as campanhas terão que buscar formas mais baratas de fazer campanha. Eles apontam ainda o risco de o caixa dois voltar a crescer.

Professor de ciência política da UFMG, Bruno Pinheiro Wanderley Reis diz que deverá haver uma intensificação de doações corporativas por meio de pessoas físicas. Ele discorda de que a doação de empresas desequilibre a igualdade política entre cidadãos:

— De um modo geral, acho que, mais do que se adaptarem a orçamentos menores, as campanhas tentarão identificar os procedimentos contábeis que façam caber os orçamentos anteriores, numa prestação de contas que só tenha doações por pessoas físicas. Não me incluo entre os que consideram que as doações por pessoas jurídicas violam o princípio da igualdade política entre todos os cidadãos. Concretamente, porém, não acredito que se possa tomar um sistema pesadamente controlado por elas, como o nosso, e levar sua participação instantaneamente a zero de maneira crível. Insisto sempre que, mais que a origem do dinheiro, é crucial que se discutam os tetos das doações. Só no Brasil esses tetos são um percentual da renda dos doadores. É esse o vício fundamental do nosso sistema.

Na avaliação de Emerson Cervi, professor e cientista político da UFPR, a mudança provocada pelo TSE dividirá o financiamento político em dois momentos, o que pode fortalecer os partidos. No primeiro, com doações no intervalo entre campanhas, quando os partidos podem receber recursos de empresas; e o segundo momento, no período eleitoral, com recursos de pessoas físicas. Para Cervi, não é preciso haver redução de custos de campanha, embora ele identifique “gorduras” a serem extintas:

— Creio que pouco mudará na prática partidária, com possível incremento de doações de empresas a partidos antes das campanhas, para uso nas eleições. Isso poderá fortalecer o papel dos partidos na política brasileira, pois os recursos não serão formalmente carimbados (destinados a um candidato que não existirá). O problema é que isso também pode fortalecer os caciques partidários, que passarão a controlar mais recursos financeiros, que antes eram destinados diretamente aos candidatos. Se houver instrumentos de controle e fiscalização das bases partidárias, os partidos podem fazer bom uso desses recursos. Por outro lado, não precisa haver redução de custos de campanha, desde que tenhamos um sistema que seja verdadeiramente democrático de financiamento. Se há uma coisa que não é democrática no nosso sistema político é o financiamento partidário e de campanha, não por motivos formais, mas por motivos de impacto prático.

PERDER ELEIÇÃO CUSTARÁ MAIS CARO

Professor de ciência política da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Vitor Peixoto acredita que outro modelo de financiamento será criado para substituir a decisão do STF. Para ele, o descrédito dos partidos reduz as chances de haver grande número de doações de pessoas físicas. Cita a fragilidade do sistema de controle das doações como um dos grandes problemas:

— O fundo partidário e as doações de pessoas físicas sozinhos não serão capazes de manter o sistema. Num cenário de ajuste fiscal, é pouco provável que o fundo tenha incremento substancial. E com a crise de credibilidade dos partidos, é difícil acreditar que as doações de pessoas físicas passem a bancar os custos do sistema. O grande risco que enfrentaremos será o de alternativas realizadas com arranjos corruptos, notadamente o aumento do caixa dois. O fato é que não temos um sistema de fiscalização eficiente capaz de rastrear o repasse indireto de recursos aos candidatos, como pagamentos de palestras e falsas consultorias. Corremos sério risco de termos uma Lava-Jato para cada eleição.

Fernando Lattman-Weltman, cientista político e professor da Uerj, diz que táticas e estratégias de campanhas terão que ser repensadas. Para ele, é possível que o campo político busque adequações do ponto de vista das receitas de campanhas e em relação aos gastos, porque perder custará muito mais caro politicamente:

— Não vejo nenhum sinal de redução da competitividade, muito menos da radicalização na luta partidária brasileira para os próximos anos. Muito pelo contrário. Com a continuidade esperada da crise econômica, ou uma lenta saída dela e os possíveis desdobramentos, em grande medida imprevisíveis da crise política atual, vejo muita turbulência à frente. E isso vai se refletir nas campanhas e na busca por recursos. Perder politicamente vai ficar cada vez mais caro para todos os principais competidores.

 

Escândalo, mesmo sem doação oficial de empresas

 

BRUNO GÓES

 

OBrasil já realizou eleições que não permitiam as doações de empresas a campanhas e partidos políticos. A última delas, em 1989, resultou no escândalo do ex-tesoureiro PC Farias, arrecadador da campanha de Fernando Collor de Mello. A relação espúria com empresários e a revelação do esquema de caixa dois da primeira campanha após a redemocratização acabaram por influenciar na mudança da legislação eleitoral e no impeachment do ex-presidente. Numa época em que a fiscalização eleitoral ainda era rudimentar, a fala do ex-tesoureiro ecoou no Parlamento durante a CPI do Orçamento:

JOSEMAR GONÇALVES/09-06-1992Pivô do escândalo. PC Farias na Polícia Federal em 1992

— Somos todos hipócritas! — bradou então PC Farias, tentando justificar o fluxo ilegal do caixa de campanha.

Os parlamentares, de fato, reconheceram um ano depois a necessidade de regularizar a situação, possibilitando assim as doações empresariais em 1993. Era uma época em que cheques fraudulentos alimentavam campanhas, e instituições eram menos preparadas para a fiscalização.

Depois da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, o país deverá ter novamente campanhas sem a doação de pessoas jurídicas. Para o cientista político Jairo Nicolau (UFRJ/Iuperj), o panorama de 2016 é muito diferente do vivido em 1989.

— O Brasil mudou muito. Hoje, nós temos os TREs e o TSE, que melhoraram o sistema de avaliação das contas, haja vista que estão descobrindo irregularidades nas prestações de contas da Dilma e do Aécio.

O estudioso diz que a descoberta de escândalos de corrupção com o da Petrobras e a atuação de instituições como o Ministério Público e a Polícia Federal devem inibir a atuação de operadores no submundo da política:

— É claro que um grau de caixa dois vai sempre existir. Eventualmente, até um pouco maior do que temos hoje. Já foi muito grande o caixa dois, e diminuiu nos últimos anos; esta é uma avaliação de quem estuda o assunto. Talvez proporcionalmente ele aumente. Mas inevitavelmente as campanhas vão ficar mais baratas. Até porque chamará a atenção uma campanha exuberante. Uma campanha com um QG de produção filmando com película de alta qualidade, propaganda maciça, isso chama a atenção, e provavelmente a pressão da sociedade vai ser maior — diz o cientista político, que cobra a regulação para a doação de pessoas físicas.

Para ele, é necessário que o limite das doações individuais seja alto, para que ocorra uma transição suave no modelo de financiamento de campanha.

VOOS DE AMIGOS NA CAMPANHA

Candidato à presidência em 1989 pelo PSD, o hoje senador Ronaldo Caiado (DEM) lembra as dificuldades da campanha:

— Eu costumo dizer que aquela foi uma eleição solteira. Não havia campanha para governador, e a gente focalizava nos debates como o da Bandeirantes, gastava com cartazes e viagens. O Collor ainda tinha o apoio de uma equipe de marketing. Eu tive o apoio dos ruralistas, como sempre tive, e me deslocava com a ajuda de amigos, com os voos deles.

Hoje, o senador se diz preocupado com a possível manipulação de CPFs de filiados aos sindicatos para engordar o caixa de campanhas eleitorais. Ele acha que o fim das doações de empresas pode piorar o quadro político.

— Basta ter o mínimo de memória para ver o que aconteceu em 1993 (quando as doações empresariais foram legalizadas).

As denúncias contra Collor surgiram em fevereiro de 1992, quando o empresário Pedro Collor, irmão e arqui-inimigo do presidente, revelou os detalhes de uma rede de tráfico de influência no governo. As denúncias, investigadas por uma CPI do Congresso, levaram à descoberta da rede de corrupção.