Título: Calote ronda lares e põe bancos em alerta
Autor: Bonfanti, Cristiane ;Dinardo, Ana Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 18/09/2011, Economia, p. 15

Para evitar inadimplência, instituições financeiras estão aprovando, em média, só 40% dos pedidos de crédito. Dívidas consomem 25,8% da renda dos trabalhadores

As famílias da classe média estão entrando numa zona perigosa. Com ampla oferta de crédito e mais dinheiro no bolso, elas mudaram seus hábitos, fizeram a roda da economia girar aceleradamente nos últimos anos e abrandaram, com seu poder de consumo, os efeitos da crise econômica de 2008-2009 sobre o Brasil. Mas, para realizar sonhos como a compra da casa própria e do carro zero, esses brasileiros recorreram às dívidas, alguns além da capacidade de pagamento.

O problema é que a inflação, sobretudo a dos alimentos, voltou com força, corroendo parte importante da renda dos lares. Assim, já começa a faltar dinheiro para fechar o orçamento. Como não vai deixar de comer, parcela da nova classe média, que ainda não tem um poder de compra tão elástico, tende a se tornar cada vez mais inadimplente, preveem os analistas. "As famílias, que já não têm um orçamento tão bonitinho, estão sentindo o efeito do consumo desenfreado do último ano. A maioria esmagadora fez compras além do que podia pagar. E dívida não combina com inflação", resume Fábio Gallo Garcia, professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

O sinal de dias difíceis ficou mais evidente, no entender dos analistas, com a decisão do Banco Central de reduzir a taxa básica de juros (Selic), de 12,50% para 12% ao ano, mesmo com a inflação em alta. Não à toa, os bancos ficaram mais precavidos. Se, até o meio do ano, 60 de cada 100 pedidos de empréstimos eram aprovados pelas instituições financeiras, hoje, esse número não passa de 40. Elas temem o estouro de uma onda de calotes. E não sem motivos.

Pelos dados do Banco Central, as famílias da classe média comprometem 25,8% dos seus rendimentos com o pagamento de dívidas. Esse índice já é comparável ao de países como os Estados Unidos e o Reino Unido, onde a crise, decorrente do excesso de endividamento, é grave. "O consumidor precisa ter consciência de que crédito é antecipação de consumo. Não se sabe o que vai acontecer na economia nos próximos meses, por causa da crise mundial. O brasileiro precisa controlar gastos e poupar", recomenda José Ricardo da Costa e Silva, professor de economia do Ibmec.

Rendimentos O porteiro Irineu Pereira Rodrigues, 42 anos, conhece bem esse tipo de dificuldade. Ele comprou um carro há oito meses e comprometeu quase 20% de sua renda com 18 prestações de R$ 465. Para dar conta do recado, alugou a parte de cima da casa onde mora e elevou os rendimentos da família para R$ 2,5 mil por mês. Ainda assim, não conseguiu a folga sonhada. Depois de tantas dívidas, foi surpreendido pela alta da inflação. As idas aos restaurantes com a mulher e os dois filhos foram praticamente suspensas. "Íamos quatro vezes por mês. Mas, agora, o dinheiro só nos permite fazer esse programa uma vez por mês. Prefiro cortar gastos com lazer a prejudicar a alimentação dos meus filhos", diz.

Para evitar novas dívidas, a família da aposentada Maria Barbosa de Lima Borges, 66 anos, optou por cortar gastos. Com uma renda mensal de R$ 4 mil, ela, a filha e duas netas ¿ Gabrielle, 11, e Beatriz, 8 ¿decidiram diminuir as saídas e as viagens à praia. A forma encontrada para economizar foi adquirir um dos símbolos das conquistas da classe média nos últimos anos: a tevê de tela plana. "Agora, em vez de irmos ao cinema, vemos filmes em casa", conta Maria. Sua filha Janete, 43, também sentiu a alta no preço das roupas. "Com essa incerteza na economia, nem sei quando vou poder frequentar mais os shoppings. Além disso, passei a cuidar mais do cabelo em casa, pois os preços nos salões de beleza estão subindo", relata.

Abertura de vagas Além do efeito inflacionário, os brasileiros podem ver suas dívidas aumentarem por outro motivo: o desemprego. Embora a taxa de desocupação esteja no nível mais baixo (6%) da história do país, números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, mostram uma desaceleração na abertura de vagas. Em agosto, foram criados 190.446 postos com carteira assinada, uma queda de 36% em relação às 299.415 abertas no mesmo mês de 2010. Com a crise econômica vivida nos Estados Unidos e na Europa, especialistas acreditam que esse cenário pode piorar. "O desemprego é baixo, mas esse quadro pode se reverter, o que nos colocaria nos patamares do passado", alerta Cristina Helena Mello, professora de economia da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Aos olhos de Cristina, com a crise internacional se desenhando mais claramente, o perigo está cada vez mais visível. "Parece que a gente vai conviver aí com um período de recessão ou, no mínimo, de queda das principais economias do mundo. Como exportamos para elas, nossa produção cairá e, consequentemente, vagas serão fechadas", estima. Os principais postos cortados serão os que não exigem qualificação, justamente os ocupados pelos integrantes da nova classe média. "Muitos brasileiros migraram de camada social sem buscar uma formação. E esse grupo está mais propenso a ficar desempregado. O conjunto dívida, inflação e desemprego é desastroso", resume Cristina.

Riscos do retrocesso O governo está preocupado com os problemas vividos pela nova classe média. O medo é de que a crise atual corroa a renda dessa camada da população, cuja ascensão foi um dos motes da campanha da presidente Dilma Rousseff em 2010. De olho nas eleições municipais de 2012, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República planeja lançar, até o fim do ano, um conjunto de medidas que impeçam o retorno do novo estrato social aos antigos padrões de pobreza.

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