Razões para derrubar a CPMF

 

DEMÉTRIO MAGNOLI

O globo, n. 29998, 24//09/2015. Opinião, p. 17

 

“ACPMF é um imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito negativo sobre o crescimento e quem paga é o pobre mesmo”. O diagnóstico, de Delfim Netto, confidente econômico de Lula nos bons tempos, expressa quase um consenso entre os economistas. Há razões de sobra, no campo estritamente tributário, para o Congresso rejeitar a volta do imposto ruim. Contudo, o motivo principal para a derrubada encontrase no campo da política.

CAVALCANTE

Primeiro, na campanha eleitoral, Dilma Rousseff prometeu leite e mel: a continuidade da política de expansão fiscal que conduziu o país ao limiar da bancarrota. Depois, na hora do estelionato eleitoral, acenou com uma breve travessia de austeridade: o ajuste fiscal cirúrgico que seria pilotado pelo mestre dos mestres, um certo Joaquim Levy. Em seguida, diante do fiasco do ajuste, enviou ao Congresso um atestado de incompetência absoluta: o Orçamento deficitário que precipitou a perda do grau de investimento. No fim da linha, acuada pela espada do impeachment, a presidente lançou- se à aventura da tributação aleatória, tentando ressuscitar o pior dos impostos. Ela quer o privilégio de tratar os cidadãos como súditos e o conforto de governar sem fazer escolhas.

A democracia tem suas regras. Candidatos que se elegem pelo recurso à mentira são implacavelmente punidos com a perda da legitimidade. A recuperação, sempre improvável, depende de um gesto dramático de reconhecimento do desvio. No lugar desse gesto, Dilma preferiu apostar num truque barato de ilusionismo, atribuindo a crise a imprevisíveis fatores externos ( a conjuntura internacional, a seca) e convocando os serviços de Levy para aplicar um unguento sobre a ferida aberta. Por alguma razão, ligada à nossa miséria intelectual, obteve ainda período de graça, na forma de apelos empresariais à unidade política em torno do ajuste fiscal, que reverberaram nos editoriais da imprensa. Não podia dar certo, como não deu.

A política econômica não existe no vácuo ideológico, num compartimento sanitizado e regulado exclusivamente pelas leis da lógica. O giro anunciado pela ascensão de Levy dependia, para funcionar, do reconhecimento explícito do fracasso da “nova matriz econômica” do mandato original — e, portanto, de uma ruptura política completa com o lulopetismo. A presidente, porém, entregou- se à missão impossível de enganar o país por uma segunda vez, indicando que a Terra Prometida situavase logo além de túnel circunstancial, cuja travessia, penosa mas curta, demandava apenas o ajuste fiscal. No conto infantil que narrou, Levy cuidaria da travessia, enquanto Nelson Barbosa, o verdadeiro teórico da “nova matriz econômica”, aguardaria no banco do passageiro para retomar o volante junto com os primeiros raios de luz. A nova CPMF nasceu da falência desse projeto, com a finalidade de vendar os olhos de todos no momento em que o comboio da economia, descontrolado, desce rumo ao precipício.

Levy, o “neoliberal”, cumpre a função de tenor no ato final da ópera bufa da “nova matriz econômica”. Seu ajuste fiscal, inicialmente apresentado como ato magistral de corte de gastos públicos, revelase agora, até para os mais néscios, como aquilo que efetivamente sempre foi: uma derrama tributária mal disfarçada pela farsa da reforma ministerial. Operando como agente do lulopetismo, o superministro do Bradesco pretende cobrar dos cidadãos os custos da irresponsabilidade fiscal de Dilma, de forma a conservar intactos os alicerces da política econômica que fracassou. A nova CPMF, muralha de proteção do passado, serve para resistir à exigência de reformas econômicas estruturais capazes de recompor a produtividade e estimular o investimento privado.

Dilma teve uma oportunidade derradeira em março, quando cerca de 1,5 milhão de brasileiros ocuparam as ruas para decretar o fim das ilusões. Naquela ocasião, ela ainda se salvaria se admitisse que mentiu aos eleitores e, dinamitando as pontes com o PT, organizasse um governo de crise assentado sobre uma nova política econômica. Mas a presidente optou pela fidelidade ao lulopetismo e, no fim das contas, às suas próprias convicções ideológicas. Ela dobrou a dose da mentira, enredandose numa teia política cada vez mais intrincada. Hoje, tornou- se refém dos caciques do PMDB, que dançam uma quadrilha em volta da chave do impeachment. A proposta de restauração da CPMF surge porque o ajuste fiscal é, nos apropriados adjetivos de Delfim Netto, “uma fraude, um truque, uma decepção”. A nova CPMF não passa de um prolongamento da agonia de um governo prostrado, impotente para tomar decisões estratégicas.

A derrubada da nova CPMF no Congresso não deve ser vista como uma recusa a encarar a realidade. Dilma foi eleita, em 2010, sobre uma plataforma política erguida no segundo mandato de Lula que se articulava em torno do gasto público, do crédito, do subsídio e do consumo. A farra fiscal do governo converteu- se em bens eletrônicos e despesas com serviços, investimentos empresariais extravagantes financiados pelo BNDES, moradias populares de baixa qualidade, importações insustentáveis, contas subsidiadas de combustíveis e eletricidade. O país pagará, inevitavelmente, a fatura das escolhas políticas feitas nas urnas. Não deve, porém, oferecer um cheque em branco à presidente arrogante e impenitente que ainda simula governar.

“Chega de impostos”, como se propaga aqui e ali, não é a resposta certa à embriaguez nacional promovida pelo lulopetismo. Uma travessia fiscal será feita, cedo ou tarde, por uma combinação equilibrada de cortes de gastos públicos e aumentos seletivos de impostos. Contudo, a condição para ela só pode ser a decisão nacional de não repetir a experiência desastrosa do passado recente. O Brasil precisa, finalmente, olhar para frente. É por esse motivo que os congressistas têm o dever cívico de derrotar a nova CPMF.