Dólar em novo patamar

 

RENNAN SETTI 

O globo, n. 29997, 23//09/2015. Economia, p. 23

 

 O dólar comercial rompeu ontem a barreira dos R$ 4, atingindo a maior cotação desde a criação do Plano Real, em 1994: a moeda encerrou a R$ 4,054, com alta de 1,80%. Na máxima do dia, foi negociada a R$ 4,068. O recorde anterior era de 10 de outubro de 2002, pouco antes do segundo turno das eleições presidenciais, quando os investidores do mercado financeiro temiam a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele dia, a moeda americana atingiu R$ 4,005, encerrando os negócios a R$ 3,999.

O contexto político hoje é outro, mas continua tenso. Na noite de ontem, estava prevista a votação, no Congresso, dos vetos da presidente Dilma Rousseff a medidas que aumentam gastos e podem inviabilizar o ajuste fiscal. Entre eles, o veto a um reajuste médio de 56% para os servidores do Judiciário.

O governo chegou a considerar a estratégia de buscar um adiamento, mas, à tarde, decidiu enfrentar a votação, a fim de acalmar os investidores. A estratégia, pelo menos no mercado, funcionou, segundo Maurício Pedrosa, estrategista da Queluz Asset Management:

— As ações começaram a recuperar parte das perdas no fim do pregão, com o governo decidindo seguir adiante com a votação. Se ele fez isso, a leitura dos investidores é que ele deve ter confiança na manutenção dos vetos. Colocamos um bode na sala e acabamos conseguindo retirá- lo.

Raphael Figueredo, analista da Clear Corretora, ressalta que, apesar de a conjuntura ser parecida com a dos dias anteriores, o recorde no câmbio é simbólico.

— O dólar acima da cotação de R$ 4, um divisor de águas, provoca um grande efeito psicológico sobre o mercado. Mas os motivos são um pouco mais do mesmo. Há ainda a desconfiança do mercado internacional, que cai fortemente com a preocupação sobre o crescimento global. No cenário doméstico, a reunião do ministro Joaquim Levy, da Fazenda, com a agência Fitch causou preocupação sobre um iminente rebaixamento da nota de crédito do Brasil — afirmou.

Segundo a analista Ipek Ozkardeskaya, do London Capital Group, em Londres, o dólar terminará o ano cotado entre R$ 4,20 e R$ 4,25. Ela considera a falta de uma solução para os problemas do Orçamento o principal fator de pressão.

Mesmo com o câmbio acima de R$4, o Banco Central ( BC) não se mostra disposto a mudar sua estratégia de intervenção no câmbio e mantém a posição de não usar as reservas internacionais para a venda de dólares no mercado à vista, como ocorreu na crise de 2009. Nos bastidores do governo, avalia- se que não adiantaria torrar a única poupança relevante e sólida do país para baixar a cotação do dólar em um momento em que os fatores que puxam a cotação para cima são políticos e fiscais. Ontem, o nervosismo do mercado no governo era atribuído a dois fatores: a possibilidade de a Câmara derrubar os vetos às chamadas pautas- bomba,; e o risco de rebaixamento do Brasil pela agência Fitch, que esteve reunida como ministro Levy e vários secretários da Fazenda.

Para irrigar o mercado e tentar conter a pressão sobre a moeda americana, a autoridade monetária ainda aposta nos contratos de

instrumento que funciona como venda de dólar no mercado futuro, porque o BC se compromete a pagar a variação cambial e recebe de volta a diferença dos juros. Outro instrumento usado nos últimos dias são os chamados leilões de linha de dólares. Nesse tipo de operação, o BC oferece divisas ao mercado e depois de um período recebe de volta os dólares, que recompõem as reservas.

DIVISA ACUMULA ALTA DE 69% EM 12 MESES

Entre as 32 principais moedas do mundo, o real é a que mais perde valor contra o dólar no ano. Desde o fim de dezembro, a divisa americana acumula alta de 52,3%. Em 12 meses, a alta acumulada é de 69,3%. Nesse tipo de comparação, apenas o rublo perdeu tanto valor, mas em um contexto de sanções econômicas devido ao envolvimento da Rússia no conflito ucraniano.

Na Bolsa de Valores de São Paulo ( Bovespa), as ações operaram em forte queda ao longo do dia, mas ganharam algum alívio no fim do pregão. O índice de referência Ibovespa, que chegou a cair 2,82% durante o dia, encerrou o pregão em baixa de 0,70%, aos 46.264 pontos. As ações preferenciais da Petrobras caíram 6,7%, atingindo a mínima de R$ 6,81 — menor cotação registrada durante um pregão desde agosto de 2003. No fim do dia, porém, encerraram em queda de 4,52%, a R$ 6,97. As ações ordinárias recuaram 3,13%. - RIO E SÃO PAULO- Recessão, juros altos e crédito escasso impedem que a disparada do dólar tenha impacto imediato no bolso do consumidor, mas, em breve, os aumentos vão começar a ser percebidos de forma mais generalizada. De acordo com economistas, as vendas em queda acabam freando a pressão do câmbio sobre os preços. Empresários concordam, mas explicam que não é possível segurar os reajustes muito tempo e preveem repasse aos preços em maior ou menor intensidade, dependendo da situação de cada setor.

— A recessão posterga o impacto porque as indústrias estão com estoques elevados, e esses produtos chegarão ao mercado sem necessidade de repasse. Quando o consumo é alto, e as empresas precisam repor estoques rapidamente, o efeito é imediato. Mas hoje, as pessoas já não estão comprando, se o fabricante repassar esse custo, aí é que não vende mesmo — explica Luís Otávio Leal, economistachefe do banco ABC Brasil.

Presidente do Centro das Indústrias do Estado do Amazonas ( Cieam), Wilson Périco, diz que, por usarem muitos insumos importados, os fabricantes de eletroeletrônicos e de motos estão com os custos pressionados e devem repassar as altas:

— Na produção de televisores, por exemplo, 80% são componentes importados. No caso das motos, 70%. Claro que não será o aumento integral do dólar e deve acontecer em dois ou três meses, depende do estoque de cada empresa. O que é certo é que isso vai diminuir o ímpeto do consumidor.

Lourival Kiçula, presidente da Associação Nacional de Fabricantes de produtos eletroeletrônicos ( Eletros), confirma a expectativa. Ele lembra que, no primeiro semestre, as vendas de fogões, refrigeradores e máquinas de lavar caíram 10%, passando de 8,34 milhões de unidades de janeiro a junho de 2014 para 7,47 milhões este ano. Já no segmento de micro- ondas, a retração foi de 16%, e, no de televisores, de 37%.

— Assim que os custos com os insumos aumentarem, será repassado. Se já estava difícil, vai ficar mais complicado. A alta do dólar vai refletir, com toda certeza, nas vendas do fim do ano — lamenta.

De acordo com a Confederação Nacional da Indústria ( CNI), o segmento amarga estoques indesejados durante todo o ano. O índice de estoques efetivos em relação ao planejado chegou a 52,3 pontos em julho, e, pela metodologia da pesquisa, taxa acima de 50 revela excesso de estoques. O problema é maior nas grandes empresas, em que o indicador ficou em 56,3 pontos. Em janeiro, era 53,5.

Humberto Barbato, presidente da Abinee ( Associação Brasileira das Indústrias Elétricas e Eletrônicas), também prevê repasses ao longo do tempo, em função dos níveis de estoques.

— Quem tiver mais fôlego vai mais longe. O setor tem concorrência acirrada, e esse fator será considerado na hora de definir preços — diz Barbato.

‘ SENSAÇÃO DE AGRAVAMENTO’

O economista Luiz Roberto Cunha, da PUC- Rio, explica que o peso da alta do dólar no IPCA, índice oficial de inflação, é pequeno, porque atinge poucos itens diretamente. Mas causa uma sensação de descontrole que pode influenciar preços:

— A inflação não deve sair dessa média de 9,5% ( no acumulado de 12 meses). Mas a alta do câmbio cria a sensação de agravamento da crise, e, por isso, algo pode ser repassado para os preços. A indústria e o comércio se sentem pressionados mais pela sensação de descontrole, de não saber como será lá na frente, do que pelo aumento dos custos.