Correio braziliense, n. 19074, 16/08/2015. Ciência, p. 11

A fé não costuma falhar

Paloma Oliveto
 

 
 



Nem sempre os melhores remédios estão nos frascos. A coisa que cura significado original da palavra, a partir do latim pode também ser uma oração, um mantra, um ritual religioso. E quem diz isso é a ciência. Depois de um longo período de negação, ela começa a voltar a atenção à espiritualidade sem o ranço que, durante séculos, marcou a relação entre as duas esferas. O interesse dos cientistas pelo menos, da maioria deles não está em fenômenos além da compreensão humana. Grande parte das pesquisas investiga o papel da fé no restabelecimento dos doentes. 

Editado pela Universidade de Oxford, o Handbook of religion and health, um compêndio de artigos científicos que associam religião e saúde, dá uma amostra de como tem aumentado a produção de pesquisas sobre o assunto. O primeiro volume, de 2001, relacionou 1,2 mil estudos publicados ao longo de todo o século 20. Já o segundo, de 2012, traz 3 mil trabalhos do curto período entre 2001 e 2010. É uma evidência de como vêm crescendo exponencialmente o número de estudos e o interesse pelo tema, observa o psiquiatra André Stroppa, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da instituição. 

Stroppa falou a uma plateia de 700 pessoas que, na quarta-feira, assistiram à palestra Ciência, saúde e espiritualidade, organizada pela Legião da Boa Vontade, em Brasília. O interesse do público pelo assunto é tanto que foi preciso abrir uma sala extra para exibir as apresentações em telão. Dos 500 inscritos previstos inicialmente, mais 200 pediram para participar. Os dois auditórios acomodaram leigos, religiosos, professores e cientistas. 

De acordo com Stroppa, que fez uma ampla revisão de artigos científicos publicados recentemente sobre a relação de saúde e espiritualidade, a maior parte dos estudos chegou a três conclusões. Pessoas com maior envolvimento religioso e espiritual estão menos expostas a situações de risco à saúde, como uso e abuso de álcool e drogas, então o próprio fato de ter esse envolvimento já funciona como fator de proteção, cita o primeiro. Em segundo lugar, fazer parte de algum tipo de comunidade religiosa traz suporte emocional, afetivo e social de qualidade. Por fim, há o chamado coping religioso, ou a forma como a fé ajuda a enfrentar situações difíceis. 

Pessoas com um coping negativo vão pensar: Deus me abandonou, Deus não me ama, exemplifica o pesquisador do Nupes. Por outro lado, aquelas que têm uma relação mais positiva com a crença religiosa/espiritual tendem a passar melhor pelas adversidades da vida. É como se sentissem que há alguém por elas nos piores momentos, que a intimidade com Deus dará força suficiente para seguirem em frente. As estratégias de coping religioso, como leitura da Bíblia e participação em grupos de oração, parecem ter um efeito substancial sobre a saúde, conforme uma relação de estudos listados no artigo de revisão Coping (enfrentamento) religioso/espiritual, publicado na Revista de Psiquiatria Clínica da Universidade de São Paulo. 

Amparo 
No trabalho, as psicólogas Raquel Gehrke Panzini e Denise Ruschel Bandeira foram atrás de estudos na base de dados de quatro grandes bibliotecas de artigos científicos, publicados de 1979 a 2006. Elas concluíram que as intervenções de coping espiritual podem ser efetivas, com significativo impacto na saúde e na qualidade de vida populacional, e reduzidos custos de intervenção em termos de saúde pública. Os artigos estudados pelas psicólogas incluem uma pesquisa com homossexuais HIV positivos que apresentaram maior contagem de células de defesa e menos sintomas de depressão após participar de estratégias como prática de orações e meditação. 

O Nupes, do qual André Stroppa faz parte, produziu cerca de 60 artigos publicados em periódicos, e boa parte deles investiga se a espiritualidade produz efeitos sobre a saúde. Um dos trabalhos do pesquisador envolveu 168 pacientes de transtorno bipolar com sintomas graves, diagnosticados há mais de 10 anos e em tratamento há pelo menos seis. Ao avaliar os registros médicos dessas pessoas, os pesquisadores observaram que, entre as que estavam vinculadas a algum tipo de religião, o número de tentativas de suicídio e de hospitalizações era menor. Em entrevista com os cientistas, elas também reportaram melhor qualidade de vida, comparadas aos pacientes sem qualquer envolvimento espiritual. 

O psicólogo Júlio Peres, especialista em neurociência e pós-doutor pelo Center for Spirituality and the Mind, da Universidade de Pensilvânia, trabalha em sua clínica, em São Paulo, com pacientes que sofreram algum tipo de trauma. De acordo com ele, a religião pode ser um diferencial na superação das experiências negativas. Os estudos mostram que a maioria de nós passou ou passará por eventos traumáticos. Na grande parte das vezes, a espiritualidade reduz a perda de controle e a sensação de desamparo. O sujeito pode encontrar mais facilmente um sentido para esse evento. Nem sempre isso acontece, mas a espiritualidade pode influenciar esse manejo relacionado à superação, observa Peres, autor do livro Trauma e superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam. 

Coesão social 
A importância da fé e da prática religiosa no enfrentamento dos traumas foi constatada recentemente por pesquisadores da Universidade de Houston, no Texas. Rheeda Walker, diretora do Laboratório de Cultura, Risco e Resiliência, investigou como a espiritualidade reduz pensamentos suicidas entre negros que passaram por experiências traumáticas relacionadas à discriminação racial. Os afro-americanos experimentam um alto índice de tensão psicológica devido à discriminação, o que leva a depressão, desesperança e outros fatores de risco para o suicídio. Contudo, têm taxas significativamente mais baixas de suicídio, comparado a americanos de origem europeia, diz Walker. 

Ao entrevistar um grupo de mais de 200 pessoas, ela constatou que a religiosidade amortece os efeitos danosos do racismo. No estudo, pessoas que reportaram níveis altos de participação religiosa não pensaram em se matar nem mesmo quando apresentavam outros sintomas da depressão. Embora a discriminação tenha consequências emocionais adversas, essa descoberta sugere que, ao conectar as pessoas, a religião pode ajudar indivíduos que sofrem com o racismo. Provavelmente porque fornece coesão social e alívio emocional, acredita a pesquisadora. 

Outra pesquisa recente, publicada na edição deste mês da revista da Sociedade Americana de Câncer, indicou que, além dos efeitos mentais e sociais, a espiritualidade pode melhorar a saúde física de pacientes oncológicos. O estudo fez uma revisão de pesquisas sobre o tema, que incluíram dados de mais de 44 mil pessoas. Os autores constataram que, entre aqueles com forte religiosidade e espiritualidade, a autopercepção do preparo físico era melhor, com maior habilidade de executar as tarefas do dia a dia e menos sintomas da doença e do tratamento. Os pesquisadores destacaram que a associação era particularmente forte nos pacientes que enxergavam um sentido na vida e acreditavam estar conectados a uma fonte maior que elas. Nessas análises, conduzidas pelo Moffitt Cancer Center, da Flórida, a prática religiosa/espiritual, contudo, como meditar ou fazer orações, não alterou a percepção dos pacientes a respeito da saúde física.